Guia da Semana

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Há muito preconceito sobre o fracasso. Como se perder, ser vencido, não alcançar ou desistir determinassem mais do que uma ocorrência e fossem determinantes à própria constituição do sujeito, na amplitude e convergência daquilo que forma seu caráter e, em última instância, sua humanidade. Existir, entre os homens, graus de relevância que não chegam a ser novidades. Desde a necessidade de sobrepor força à sobrevivência até o poder administrado por diferenciais intelectuais e culturais, o homem se vê aprisionado à esfera daquilo que é capaz de demonstrar.

Com o tempo, a demonstração deixou de ser suficiente e a representação tornou-se o valor de singularização. Representar algo, ser representante, portanto, determinou ao homem a perspectiva de sua manifestação política sobre sua comunidade, quando suas convicções e as certezas de suas escolhas, frente ao bem-comum, revelaram-no especial e necessário. Há nisso, uma distância fundamental na reelaboração do homem, que deixa de ser alguém por si para ser alguém que seja para todos.

Se antes o homem mantinha-se tangenciado as suas necessidades e conquistas, como princípio de agregação e responsabilidade para com os outros, o alguém que representa o todo precisa da existência do sistema tangencial para se fazer representante, afinal, só é possível representar algo se admitida a existência deste como existência própria e anterior ao próprio representante. A dimensão antropológica, que antes constituía a presença do sujeito em comunidade, passa à dimensão política, onde o sujeito está, na realidade, anterior ao próprio homem, substantivado.

Igualmente, o fracasso - manifestação do desejo não concretizado - sofre igual transformação. Antes, perante o outro, condicionava o sujeito a uma recolocação dentro da estrutura comum, cabendo-lhe entender novamente sua função e participação no universo pertencente ao comum. Posteriormente, o fracasso, ao ser aproximado à construção política do homem, implica, necessariamente, ao seu não pertencimento e participação. O novo fracasso, melhor dizendo, o moderno, mais do que identificar o perdedor, anula-o como sujeito, construindo-o sob os paradigmas da inutilidade, limitado ao servir o vitorioso de modo a manter, pragmaticamente, sua vitória incontestável. Ou seja, o fracasso moderno aprisiona e escraviza ideologicamente o sujeito que o sofrera, sem que haja grandes possibilidades de revertê-lo ou superá-lo em uma próxima investida. Nascendo aí uma rede de indústrias periféricas para oferecer ao homem possibilidades de não fracassar.

Da modernidade aos nossos dias, o fracasso sofrera transformações. A dita pós-modernidade parte para outra observação do sujeito, onde não mais importa o valor de demonstrar e/ou representar, mas, sobretudo, o de produzir, de gerar relações afetivas, sociais, culturais e políticas. Aqui, o homem se encontra sob o paradigma do fracasso inevitável, enquanto insiste, pelo preceito anterior, que o fazer é suficiente para sobrepujar o fracasso eminente. O pós-moderno amplifica o sentimento de inutilidade, o valor anulador sobre a compreensão existencial do sujeito. Agora, improdutível, passa a representar valores negativos para o todo, portanto, ao fracassado, resta o isolamento.

Reagir a isso determinaria ao sujeito expor seu fracasso como forma de aceitar sua situação. Manter-se, entretanto, submetido, silencioso e passivo, assemelha o sujeito ao outro, surgindo, daí, uma cumplicidade velada, onde a nova casta nega seu fracasso, preferindo se ver comuns. Fracassado, portanto, verdadeiramente, é aquele capaz de se dizer falível, incapaz e infeliz. Com o paradoxo de ser possível somente ao assumidamente fracassado modificar sua situação, enquanto ao passivo a permanência em seu estado de letargia, é fundamental a manutenção de sua felicidade. Esse existir passivo termina por tornar o homem medíocre e também mediano, enquanto o redesenha nebuloso e correto.

E é esse o ponto maior de irresponsabilidade que se pode atingir: ser meramente correto. O homem correto abastem-se de sua presença singular no presente para assisti-lo, definido pelos dois extremos: o vitorioso que conduz o sistema aos padrões determinados e organiza a ordem comum, e o fracassado, cujo empenho frustrado movimenta a ordem aleatoriamente, introduzindo inquietações às certezas que, aos poucos, levam os vitoriosos a outras possibilidades de atuação. Ao fim, cabe ao fracassado determinar, de fato, o que justificarão os vitoriosos de amanhã.

A sociedade, tal qual é, insiste em expurgar o fracasso de seu imaginário. E, na ambiência cultural, essa observação se mantém fiel à regra. Qual artista gosta de fracassar? Mas não deveria ser da arte a pertinência do experimento? O erro, o errar, todavia, é, antes de uma resposta social ao artista, promessa e descoberta em processo. Talvez seja por isso, então, que a arte brasileira esteja em um momento tão desinteressante, correta e mediana. A ausência de experimentos e inquietações é proporcional à necessidade de reconhecimento e acertos. Exemplos diretos atuais são as escolhas das premiações e editais, cada vez mais em busca de "acertos", o subestimando por avaliações quantitativas e mercantis.

Enquanto o homem servia a demonstrar, a arte existia em sua necessidade e finalidade. Depois, ao ser representativa, a arte discursara seus valores em modismos e vontades definidas. Agora, o homem producente faz da arte um artefato de resultado, produzido para nenhum fim. Época perfeita para a arte, então, se livrar da servidão e para que possa, enfim, encontrar sua existência como atribuição independente na sociedade. Enquanto o artista não se vale de sua liberdade em errar, experimentar e redesenhar o amanhã em possibilidades impensadas, resta esperar e manter viva a necessidade que faz com que as exceções fracassem diariamente. Paciência. Há muito vitorioso por aí que pouco ou quase nada significa. Há também fracassados, cuja pertinência de seus fracassos um dia poderão ser a base do comum. A arte e os artistas são incógnitas. E, em breve, chegarão às centenas para a Bienal Internacional de Artes que fracassará ou não, pouco importa. Seja lá o que tiver de ser...


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Apito final?

Espelhos no Escuro

Duas vezes Antunes

Quem é o colunista: Ruy Filho.

O que faz: Diretor e dramaturgo.

Pecado gastronômico: Carpaccio de pato do Piselli.


Melhor lugar do Brasil: Salvador fora de temporada.


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Atualizado em 6 Set 2011.