Guia da Semana

Foto: Divulgação


A presença de La Fura dels Baus em São Paulo pode ter deixado marcas mais profundas, mas não pelos motivos que se esperava. A começar pelo espetáculo apresentado, Cielo Arte. Monumental, como costumam ser os trabalhos do grupo catalão, o espetáculo se perdeu em gigantismo e deixou de usar bons argumentos ao que apontava ser a exploração sobre o surgimento e a existência humana. Muitas são as referências. Da Bíblia e a figura angelical da anunciação para a Torre de Babel; desta para o homem errante, o homem maquínico ou servidor de sua sobrevivência; o inferno dos comuns e a reconstrução de sua identidade pela reconquista do coletivo, que bem poderia ser lido como a transição para a própria civilização moderna. Entre idas e vindas, o gigante herói latinoamericano surgia paradoxalmente como necessário e invasor.


No entanto, o que parecia um enredo bem engendrado perdeu-se em sua incapacidade de dar conta de tantas promessas. Fundamentado nos efeitos, muito se diluiu na demora das cenas e transições, levando a crer que boa parte dos argumentos servia aos desejos das imagens e não estas ao sentido narrativo do espetáculo. Ainda que esse seja conquista da cena contemporânea, submeter-se à imagem não deu o resultado esperado. Não que isso invalide os impactos causados por cada aparição e pelos novos efeitos. A beleza e qualidade estética com que eram tratadas as propostas justificam o fato de o grupo ser uma das mais interessantes presenças no teatro das últimas décadas.


Contudo, há de se regular o tempo de um efeito, de uma imagem, de uma sensação para que o diálogo desse encontro seja o impacto da descoberta, já que o acostumar-se vence a surpresa cada vez mais velozmente. Não houve esse cuidado com o ritmo. As imagens demoravam a passar pelas necessidades exigidas no preparo técnico e sua execução, enquanto o público esperava ansioso pela próxima, sem um mergulho na narrativa, ser absorto pelas ideias, deixar-se conduzir, literalmente, pelas sensações.


Em um outro ângulo, naquilo que deveria ser o menos interessante, está a amplificação do propagandismo realizado. Cielo Arte, como fora denominado o trabalho, explicita o intuito do trabalho, define o trocadilho com a empresa patrocinadora, aproveitando-se do fato de ser um espetáculo realizado a partir da construção de imagens acima do espectador, tendo o céu por pano de fundo. Cielo, em espanhol, quer dizer Céu.


No entanto, ao trazer o espetáculo para o escuro céu da noite, muito se perdeu dessa importância. Para quem pôde estar, dias antes, no ensaio realizado ainda de dia, a profundidade celestial do azul claro se mostrava mais significativa, emblemática e pertinente ao discurso original. Apresentado à noite, o infinito escuro perdia a dimensão espacial e o próprio gigantismo das cenas. A altura de algumas acrobacias deixa de ser impactante ao cenário, limitadas, portanto, aos movimentos e desenhos aéreos. E aí, outro equívoco. Porque, de modo geral, ambos não eram tão instigantes, nem como coreografias nem como superações de limites. Comuns, os movimentos só se diferenciavam da normalidade de qualquer teatro pela altura.


O Céu, portanto, argumentado desde sempre, mais se relacionava à dimensão do que ao signo, ao patrocínio do que à narrativa. Absolutamente desnecessária a inclusão da logomarca da empresa em uma das cenas. Acobertando uma gigantesca roda, onde atores se movimentavam como ratos correndo em laboratório, a logomarca tirou de parte do público a possibilidade de assistir o mais interessante da cena: o esforço humano e a superação do movimento impossível pela reunião em coletivo.


Curioso é perceber que tanto o patrocinador quanto o grupo abriram mão do próprio espetáculo para fazer do patrocínio o espetáculo em si. Que este seja o viés da empresa, é uma pena. Esse tipo de intromissão só revela a limitação que seu departamento de marketing possui de uma ação artística. Própria do marketing dos anos 90 que dominou o mercado brasileiro e que, infelizmente, ainda se mantém em ação, tal uso, ou melhor, intromissão sobre a criação desfila mais à vontade pela propaganda do que pela arte em si. Isso nos faz crer que, para a empresa, o mais relevante seria espetacularizar sua marca, fosse quem fosse o artista a admiti-la, desde que este oferecesse ainda a própria espetacularização da mídia na manipulação de seu reconhecimento.


Pena, também, é descobrir, da maneira mais ingênua, que o artista que aceitou isso é um dos grupos mais conceituais e importantes da cena atual. Mercantil, submisso ao comércio igualmente de sua identidade, o El Fura dels Baus que assistimos por aqui é a versão financeira daquilo que fez sua história. Possui sua identidade original no fazer e na realização, mas cumpre a função de venda desses atributos da maneira mais aleatória possível. Desde quando ganhar dinheiro é errado? Não o é, assumo. Mas é uma pena que, para muitos brasileiros, jovens artistas sobretudo, o primeiro contato do grupo seja superficial e comercial, e não artístico da maneira que se aguardava.


Quem sabe um dia o El Fura não retorne para cá com a verdadeira dimensão que lhe cabe. Talvez isso seja uma possibilidade, já que o Brasil, hoje, possui os recursos que a Europa em crise deixou de ter. E quem sabe a empresa compreenda que a melhor propaganda para sua marca é fazer da arte um encontro genuíno e transformador, e não um processo de agigantamento de sua identidade? Se a Cielo entender isso, disponível como parece estar a nos reunir com grandes artistas, então o Brasil terá o infinito por ganho. Do contrário, veremos coisas no máximo interessantes e chegaremos, sim, a decorar sua marca. De qualquer forma, ainda que cansativo, foi divertido sim.

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Isolado de si mesmo

Quem é o colunista: Ruy Filho.

O que faz: Diretor e dramaturgo.

Pecado gastronômico: Carpaccio de pato do Piselli.

Melhor lugar do Brasil: Salvador fora de temporada.

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Atualizado em 6 Set 2011.