Guia da Semana

Foto: Divulgação


Descobri que os gestos obsessivos e repetitivos, quase maquinais criados por Pina Bausch, é o que me alucina, depois de assistir aos espetáculos Café Muller e Sagração da Primavera. Há muito mais de Pina em mim porque ela se repete, ela se repete, ela se repete até que a repetição cai em desespero.

Há momentos de impacto visual e auditivo, seguidos por cenas de gestos mínimos e total silêncio. Um grande constraste. Os gestos são movimentos da vida diária, mas em cena têm funções estéticas. Pina mistura ambos os sentidos em sua dança e com a repetição chega ao abstrato. As repetições causam reações na plateia.

Café Muller é ambientado num café cinzento e totalmente vazio. Os bailarinos mergulham numa catarse. Estão numa espécie de sonambulismo. Será tudo um sonho? A ópera da trilha chega a assustar, tamanho distanciamento racional que eles demonstram e tamanho envolvimento que isso desperta no público. Dá vontade de chorar, porque a solidão da cena é imensa. Os bailarinos correm por entre mesas e cadeiras e hesitam ao encontro.

Inicialmente são só duas bailarinas de camisola branca.

A segunda, mais no fundo do palco, faz o papel de duplo com movimentos lânguidos que quase irritam, num tempo defasado em relação à bailarina do primeiro plano. Esta, por sua vez, corre frenética às cegas e outro bailarino corre à sua frente, retirando os objetos cênicos do caminho e traça assim, o seu percurso quase ao acaso. Há um tom de lamento e inquietação. Timidamente ou inconscientemente - uma vez que está sonâmbula - , a mulher sem visão parece correr atrás do amor, que foge, mas a protege a todo custo. Neste exato instante, é instaurada a impossibilidade de um contato íntimo e profundo. É tão triste. O público sente uma melancolia pelas bailarinas silenciosas e tão entregues. Bate um frio, a surpresa e o alargamento do encantamento inicial. É uma peça teatral ou uma dança? Eu me perguntava, eu não conseguia e aquilo ía. Onde começava: é dança ou não é?

A dança ilumina. Nada diz e ainda assim, emociona a plateia. Impossível não lembrar de Pedro Almodóvar e da primeira cena de Fale com Ela. No filme, Pina aparece logo de cara e com seu gestual rítmico, faz dois homens se emocionarem. Os movimentos que nos remete ao cotidiano parecem afastar as pessoas. O primeiro casal de bailarinos é formado. Pertinho, um do outro, num abraço, depois num beijo e no carregar do colo, os movimentos se repetem à exaustão e à abstração. É no abstrato que surge nitidamente o desejo de encontro e de amor. Os seis bailarinos se apresentam em movimentos fugidios. Os corpos se evitam e quando vem a repetição do beijo/abraço/colo. Isso chega a ser engraçado, porque quebra o andamento.

Como olhar o palco na concepção de Pina Bausch? Interessa a massa córporea do todo ou a lágrima de uma das bailarinas ou ainda a unha lascada da outra? O dorso belo e saudável do bailarino mais próximo, a sobrancelha loira do outro no fundo ou as mais de cinquenta cadeiras, mesas, as placas de vidro transparente e a porta giratória no centro do cenário? Os seis bailarinos ou o salto rosa de uma só? Cenas acontecem simultaneamente.

Tentei acompanhar uma das bailarinas, que tirava a camisola, sentava e se debruçava na mesa para depois de algum tempo vesti-la novamente, levantar-se e encontrar outro bailarino e caminhar com a mão em sua cintura. E de novo, recomeçar a sequência: tirar, sentar, debruçar, vestir, levantar, encontrar o bailarino, caminhar com a mão na cintura e sentar, debruçar, vestir...

Queria acompanhar o exato instante em que ela tirava a camisola, mas fiquei inúmeras vezes presa em outro acontecimento mais à frente do palco. Quando voltava para a cena do fundo, a camisola já tinha sido tirada e a bailarina encontrava-se debruçada. Certos movimentos sucedem numa repetição infinita e esta foi a minha sorte: em dado momento acertei o olhar no instante em que ela se desnuda.

Essa foi a primeira vez que vi um espetáculo de Pina Bausch e a força genuína de sua obra foi como quando li Katherine Mansfield ou a primeira audição de Cor-de-rosa e Carvão de Marisa Monte. Veio pra ficar.

Ao final de Café Muller, eu tinha muito o que me demorar em pensar, era como se eu não soubesse falar. Tomei um café doce-doce-doce no hall do saguão, enquanto ouvia distraidamente dois amigos entusiasmados e acompanhava curiosa pelo monitor o palco ser coberto de lama para o próximo espetáculo, A Sagração da Primavera.

Aquela coisa toda das cadeiras e mesas e das camisolas brancas é realmente incrível, mas lembrei-me de minhas costas que doeram grande parte do tempo por conta da cadeira do Teatro Alfa. Não atingi o envolvimento pleno. Já no A Sagração da Primavera, fiquei maluca, bateu freneticamente, tanta e tamanha a onda (assunto para a próxima coluna).

Pina é uma grande influência para os criadores das artes cênicas, verdadeira revolucionária dos elementos da dança. Quebrou as regras inúmeras vezes. É grandiosa e não podemos oferecer menos que isto: coração na boca e mãos doloridas de tanto aplaudirmos por quase dez minutos. Ao sair do Teatro Alfa, todo o resto de vida eram bagatelas.

Quem é a colunista: Uma apreciadora apaixonada de arte.

O que faz: Produtora Cultural e Publicitária.

Pecado gastronômico: O prazer não deve vir acompanhado de culpa!

Melhor lugar do mundo: Um que tenha livros, museus, cafés e meus amigos.

O que está ouvindo no carro, iPod, mp3: Radiohead, PJ Harvey, Lykke Li e Strokes.

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Atualizado em 1 Dez 2011.