Guia da Semana



Em meados da década de 70, o cenário musical brasileiro era habitado por um time invejável de artistas que encontraram na fusão da música negra americana com ritmos locais, principalmente o samba, uma expressão sonora inovadora, que ainda hoje norteia o trabalho de muitos músicos. Encabeçados pelo grande Tim Maia, essa geração rendeu generosos frutos ao cânone nacional, como o aclamado álbum Maria Fumaça, da Banda Black Rio.

Filho de Oberdan Magalhães, criador da Banda Black Rio falecido em 1984, o cantor e tecladista William Magalhães retomou o trabalho de seu pai em 1998, após profundas pesquisas sobre o legado deixado pelo cultuado grupo em países da Europa como França e Inglaterra. Com uma nova formação, mas mantendo as características que consagraram a BBR como um dos expoentes do funk nacional, o conjunto voltou a agitar os bailes do país. Em entrevista ao Guia da Semana, William fala sobre o novo álbum do grupo, Samba Nova, e discorre sobre a importância de Tim Maia para a música brasileira, além de apontar alguns músicos esquecidos pela história.

Guia da Semana: A Banda Black Rio retornou há quase uma década atrás. Qual balanço que vocês fazem desse período? Quais frutos foram colhidos nessa nova fase?

William Magalhães: O maior fruto de todo o nosso trabalho é saber que a banda continua crescendo. Com o lançamento do álbum Movimento, em 2001, e agora também com o novo trabalho - Samba Nova -, que está disponível no MySpace, podemos constatar a dimensão real do reconhecimento da Banda Black Rio no Brasil e no mundo. E das opiniões dadas por grandes músicos como Cristovão Basto (pianista e arranjador do disco Maria Fumaça, gravado pela primeira formação da BBR). Também poderia dizer que a banda atual consegue alcançar um público novo e mais amplo, por estar voltada pra um som mais popular (pop retrô) que manifesta um interesse gigantesco entre as grandes massas no Brasil e no mundo.

Embora vocês acrescentem ocasionalmente canções da antiga Black Rio no repertório, a prioridade está focada nos novos trabalhos. Como vocês procuram manter vivo o espírito que consagrou o grupo nos anos 70, quando não só a música, mas o cenário era bem diferente?

A antiga banda sempre esteve direcionada para um trabalho mais jazzístico e antropofágico quando misturava um som mais funk da década de 70 com ritmos brasileiros como samba, baião e outros. A banda atual segue os mesmos preceitos, além de tentar manter o trabalho cada vez mais voltado para um público menos elitizado e mais popular. De certa forma, a antiga BBR foi cobrada pelas gravadoras para apresentar um repertório mais popular nos discos posteriores ao Maria Fumaça ( Gafieria Universal e Saci Pererê). Essa é uma das metas que procuramos manter como um link com a antiga banda e, claro que dentro da mesma analogia musical, mas de uma forma mais pop. Era assim que o meu pai, Oberdan (líder e fundador da primeira formação da BBR), pensava em seguir sempre em frente, sem repetição. Cada disco é uma história nova, apesar de sempre ter uma mesma concepção.

Tem sido muito comentada na mídia a descoberta de antigas canções do Tim Maia. Vocês acreditam que há um número significativo de artistas fundamentais na história da soul music brasileira que ficaram esquecidos nas décadas de 70 e 80?

Eu sinceramente acho que com o advento do rock na década de 80, vários artistas desse movimento foram literalmente esquecidos, como o Cassiano, que é considerado um dos mestres do Tim Maia, Hildon, Lady Zú, Tony Tornado, Gerson King Combo, Dafé, e vários outros que realmente fundamentaram a música black brasileira. Acho que infelizmente a indústria fonográfica tinha o poder de ditar as regras do mercado na época, principalmente com os jabás nas rádios, e isso ocasionou o desaparecimento desses artistas por um bom tempo. Felizmente a consistência musical desses artistas permitiu que eles reaparecessem no mercado recentemente, pelo reconhecimento de suas obras, e nesse cenário o maior destaque fica com o nosso grande Tim Maia.



A despeito de toda a mística que envolve a figura do Tim Maia, qual a importância que sua obra tem na música brasileira?

Acho que o Tim sempre foi um grande artista, muito visionário, e as pessoas nunca entenderam muito bem o que ele realmente representava. Foi necessário o Caetano Veloso dizer "Quero que tudo saia como o som de Tim Maia" para que as pessoas realmente começassem a valorizar seu talento e suas canções. Sendo assim, vejo que ele realmente eternizou um trabalho de grande importância e se tornou uma referência musical para todos nós, seres limitados desse Brasil.

Antigamente, os bailes funk reuniam os amantes da soul e da black music. Existem lugares como esses hoje em dia, principalmente no Rio e em São Paulo? Como vocês analisam a renovação do público da Banda Black Rio?

Eu acho que tudo isso que aconteceu foi realmente maravilhoso em termos de movimento black, mas na realidade virou uma coisa muito nostálgica. São muito poucos lugares aqui no Brasil que preservam esses pólos de black music setentista. Mas a grande importância desse movimento foi o fator embrionário na música brasileira, que impulsionou toda uma geração de jovens músicos e pesquisadores desse estilo, ajudando a difundir e propagar a música black em todo o Brasil até os dias de hoje como uma força constante e crescente.

Além do próprio legado da Banda Black Rio e de outros grandes nomes da geração 70 e 80, onde vocês buscam inspiração, principalmente nos dias de hoje, para compor novas faixas?

A música tem um conceito de retroatividade muito visível na sua essência. Baseado nisso, estamos sempre ouvindo, pesquisando e revendo as referências mais antigas da música brasileira, americana, cubana, africana, entre outras. Acreditamos que nessa retroatividade reside o que acaba sendo a maior fonte de inspiração musical nas nossas composições.

Como foi a participação do César Camargo Mariano e do Mano Brown em Samba Nova?

O César Camargo Mariano é um dos maiores mestres da MPB, tendo participado na concepção e criação de trabalhos musicais de vários artistas como Elis Regina, Wilson Simonal, Tom Jobim e outros mil. Sempre fui um grande fã de sua obra e do seu jeito totalmente superparticular de tocar piano. Tive a oportunidade de conhecê-lo em uma festa, quando me mudei para São Paulo em 2006, e tive a grande surpresa de saber que ele era meu fã também. A partir dai, surgiu uma grande amizade, fruto dessa admiração mútua, que resultou na participação dele no disco. Coincidentemente a temática do disco é samba, é uma das especialidades musicais do César. Já o Mano Brown apresenta uma outra vertente que se encaixa com o lado mais funk da BBR., com a música Mente do Vilão, uma crítica severa aos problemas de desigualdade social e racial no Brasil. E também pelo fato de eu estar produzindo o disco dos Racionais MC´S, pois tenho muita admiração pelo trabalho deles de bandeirantes do rap nacional.



O último trabalho de vocês passeia mais pela bossa nova, que é um gênero que tem sido bem explorado nos últimos tempos, em virtude do seu 50º aniversário. Como foi a decisão de incluir uma pitada do ritmo no álbum?

Sempre se falou que a bossa nova era domínio de artistas como João Gilberto, Tom Jobim, Nara Leão, entre outros que representaram e divulgaram esse estilo com muita competência e criatividade. Mas como ela é uma derivação do samba - dito pelo próprio João Gilberto -, nada mais justo do que considerar a bossa nova como um domínio também da música negra brasileira. Sendo assim, como a BBR tem uma grande influência do samba na sua essência, ele foi contextualizado no novo trabalho da Banda, o álbum Samba Nova. Também fazemos menção a artistas que foram precursores do estilo como Jonny Alf e Geraldo Pereira, que talvez não tenham tido o verdadeiro reconhecimento. Na verdade, as músicas do novo álbum já estão prontas desde 2006, mas eu nunca tinha pensado nesse gancho antes.

Atualizado em 6 Set 2011.