Guia da Semana

Foto: Stocks


Sou uma brasileira formada em artes no Brasil que vive na Espanha. As pessoas me perguntam o que estou fazendo naquele país distante em tantos aspectos, principalmente cultural, e minha resposta é a mais inesperada: aperfeiçoando e dançando flamenco. Claro que à princípio as pessoas deixam escapar aquele "Uau!!", porém depois muitos pensam que eu sou um pouco louca, afinal o que um brasileiro pode ter a ver com essa arte chamada flamenco?

Hoje, depois de 12 anos estudando essa arte e vivendo a quase um ano na Espanha posso afirmar que nós brasileiros temos muito mais a ver com essa cultura do que imaginamos. Para começar a defender essa minha teoria é necessário que você saiba um pouco mais sobre a arte que há séculos encanta pessoas do mundo inteiro. O flamenco é em sua base poesia e música, principalmente cante (a voz), posteriormente vem o violão, apenas depois que a musica é totalmente instalada é que o baile é inserido, com isso temos presente em uma única manifestação artística diferentes meios de comunicar o Flamenco, o que o torna mais complexo e mais rico. É importante lembrar que a dramaticidade e o sentimento dessa dança também é fundamental na encenação, é impossível cantar, tocar e dança-la sem essa dramaticidade, esse sentimento.

Vivendo no meio, onde essa arte nasceu e cresceu, vi que tudo ainda pode ser mais complexo, não apenas por sua natural dificuldade rítmica e de movimentação, mas também por uma questão cultural. A origem do Flamenco ainda é uma teoria pouco definida, o que os chamados flamencólogos têm são apenas teorias baseadas em fatos históricos, o que sabemos é que o Flamenco vem de origem gitana (cigana) com influencias árabe, indiana, espanhola, judaica, cubana, sul-americana e por ai vai...

Porém onde essa arte é mais vivida realmente é pelos gitanos espanhóis, é através deles, de suas festas e crenças que o Flamenco mais puro ainda pode ser visto e admirado, isso tudo é muito bonito, mas também se tornou uma cultura fechada, para os ciganos espanhóis quem não é cigano nunca será capaz de cantar, tocar, dançar como um verdadeiro e puro cigano de raça, o que para mim me parece uma grande ignorância, pois vivendo nesse meio vejo que essa arte pode sim ser manifestada por espanhóis não ciganos de maneira tão maravilhosa quanto por um cigano puro e o contrário também é possível, um cigano nascer e crescer nessa cultura e nunca chegar a dançar, tocar e cantar bem. Mesmo assim, esse é um grande preconceito que os não ciganos sofrem por decidir estudar e trabalhar nessa arte.

Foto: Morguefile


Eu além de não ser cigana, sou brasileira, já imaginaram? O preconceito é dobrado, já não bastasse ser aquele ser estranho para os próprios brasileiros porque vou para Espanha estudar Flamenco, chegando lá além de estudar uma arte complexa, ser estrangeira, não cigana, não espanhola, ai meu Deus, muitas vezes seria mais fácil mudar de profissão...

Existem ainda estórias e pessoas que me motivam, os próprios brasileiros que vivem ou vão para Espanha pelo Flamenco, e você deve pensar que são poucos, pois se surpreenderia com os números. Hoje na Espanha existem pelo menos 10 guitarristas flamencos brasileiros trabalhando na área, alguns até com prêmios e muito reconhecimento, 50 bailarinas espalhadas pela Espanha, muitas trabalhando e outras que decidiram dançar fora em países como: Japão, Austrália, Alemanha, Itália, França. Reino Unido, China, Turquia e etc... Por ano vão muitos grupos de brasileiros que já dançam para estudar flamenco, já cheguei em uma das aulas da escola com mais nome da Espanha em Madrid, chamada Amor de Dios, que de 40 alunos, 8 eram brasileiros. O contrário também acontece, no Brasil cerca de 5 profissionais espanhóis vem para dar cursos em diferentes cidades, do sul ao nordeste o Brasil está recebendo cada vez mais essa arte, essa cultura.

Para alguns países ainda somos exemplo nessa arte, pela graça, gingado, ritmo e simpatia do brasileiro, somos capazes de chegar longe. No Brasil até existe festival internacional de flamenco, sabia? Com participantes da américa latina toda e espanhóis, é quase que uma semana de overdose flamenca. Para o próximo ano esse festival, que percorre diferentes cidades, dentre elas: São José dos Campos, São Paulo, Brasília, Belo Horizonte... Terá como convidada especial uma bailarina espanhola chamada La Truco, uma bailarina já com trabalhos reconhecidos em muitos países chegará por primeira vez no Brasil para dar cursos e mostrar um espetáculo com sua companhia.

O mais surpreendente dessa estória é que ela poderia vir para o Brasil contratando bailarinos espanhóis e ciganos e sabe o que essa mulher decidiu? Fazer um espetáculo com 3 bailarinas brasileiras, estou entre uma delas e minha felicidade é indescritível, isso apenas confirma que essa arte é sim aberta a outras culturas e que ainda existem pessoas evoluídas que não se prendem a detalhes preconceituosos de raça, com isso convido a você brasileiro que se aproxime mais dessa arte chamada Flamenco, pois muitos brasileiros como eu, lutam cada dia para quebrar essa barreira cultural e mostrar que essa arte é sim compatível com a nossa!

Quem é o colunista: Maria Carolina Zanforlin.

O que faz: bailarina de flamenco, atriz e atualmente estuda em Madrid, na Espanha.

Pecado gastronômico: todas as comidas da minha mãe.


Melhor lugar do Brasil: Santiago, litoral norte.


Fale com ele: [email protected]

Atualizado em 6 Set 2011.