Guia da Semana

Foto:Guga Melga

Abrem-se as cortinas. No palco, o encontro de um boêmio com São Pedro e Santo Onofre, todos observados por um anjo. Entre eles é estabelecido um diálogo, mas não em prosa e sim em poesia, versos decassílabos, junto com música. Esse é o ponto de partida do espetáculo Um Boêmio No Céu, que acaba de encerrar a temporada no Rio de Janeiro e agora está em cartaz no SESC Vila Mariana, até o dia 18 de novembro.

O texto é do compositor Catullo da Paixão Cearense, que escreveu a canção Luar do Sertão, sendo considerado por muitos críticos como o músico e poeta que mais descreveu o sertão brasileiro, a natureza do agreste e as pessoas dessa região.

Foi a partir do conhecimento de sua obra, por meio de um presente dado pela esposa, Vera Fajardo, que o ator José Mayer, protagonista do espetáculo, afastado dos palcos paulistas desde 2000, começou a estudar as poesias e canções do músico, além de iniciar o projeto de levá-las para os palcos. O texto fala de assuntos que variam entre paixão, amor, política, igreja e mulheres, tratados de uma forma bem-humorada, romântica e irreverente.

José Mayer durante a coletiva
"Estudei durante três anos algumas canções do compositor e esse ano resolvi me dedicar e interpretar seu livro, além de levar para o público suas poesias, pois antes de ler esse livro ( Um Boêmio no Céu), não sabia que Catullo também escrevia para o teatro", comenta o ator na coletiva dada no dia 16/10, no SESC. Dirigido por Amir Haddad, com Antonio Pedro Borges, Aramis Trindade e Kátia Brito no elenco, durante o espetáculo são interpretadas nove canções do músico pelo Boêmio (José Mayer). São Pedro (Antonio Pedro Borges) interpreta uma letra escrita pelo diretor musical da peça José Maria Braga, a respeito do texto do poeta cearense.

Na coletiva, José Mayer, que tem no currículo seis minisséries, 12 filmes, 18 novelas e 36 peças, comentou a respeito desse projeto, da vida e obra de Catullo da Paixão Cearense e de trabalhar com o diretor Amir Haddad. Além disso, conta da experiência em usar a poesia na interpretação. O ator falou da dificuldade de fazer teatro no Brasil, do cinema nacional, além de dizer sobre o retorno do público quanto ao seu personagem no espetáculo, pois suas últimas interpretações nas novelas foram papéis desonestos e traidores.

Foto: Guga Melga
Mayer, que além de atuar foi produtor do espetáculo, iniciou o trabalho em maio deste ano. "Foram exatos 100 dias de trabalho. Começamos no dia 7 de maio e estreamos, no Rio de Janeiro, em 7 de agosto", disse o protagonista que escolheu os outros três atores para participarem da peça, além de convidar o diretor Amir Haddad para dirigir o espetáculo. Amir, que faz parte do grupo "Tá na Rua", ajudou Mayer na escolha de Antonio Pedro Borges para interpretar São Pedro. "Ele já conhecia Antonio, que foi muito bem pensado para fazer o papel desse santo", completa.

Trecho do texto de Catullo da Paixão Cearense
"Quero dizer-lhes em confissão que amei lutuosamente uma crioula que tinha a alma da noite em seu olhar. Tão bonita que até me parecia na sua cor trevosa de corumba, um anjo misterioso da macumba e as poesias da noite sem luar. Essa flor tropical feita de lavas que tinha a seiva branca das escravas de quem mamei o leite, tinha o seu amor tão candogueiro, tão brasileiro e tal concupiscência e inocência do seu olhar que vos direi até que sempre que a beijava sobrancelho, eu sentia no seu beijo feiticeiro, eu sentia patrioticamente o gosto e o cheiro do nosso gostosíssimo café."


A história não é contada, mas declamada. Essa foi a novidade: levar a linguagem da poesia para os palcos que normalmente usam da prosa para as apresentações. O ator não fez nenhuma adaptação, deixando o texto original do compositor. "É a experiência nova de conduzir a platéia numa viagem poética, da língua e das imagens brasileiras, do caráter nacional. A poesia também utiliza de outros recursos como a metáfora", contempla o produtor.

José Mayer e Aramis Trindade
Foto: Guga Melgar
Outra característica diferente do espetáculo é o uso da música. O texto do livro Um Boêmio no Céu foi feito para ser declamado. Foi então que Mayer pensou em reunir música e poesia. "A peça é só o texto. Mas como durante três anos eu fui escavando modinhas, canções de Catullo, então imaginei que faria um grande casamento, inserir músicas no texto e ficou muito harmonioso", conta. Um trio musical, formado por violão de sete cordas, cavaquinho e clarinete, acompanha todos os personagens durante o espetáculo.

Antonio Pedro Borges interpreta São Pedro e também canta durante a peça. Na história, o santo se espanta com as histórias do Boêmio, mas depois se sensibiliza e relembra de sua vida quando foi pescador. "Eu recebi o convite para interpretar o santo e para mim foi uma surpresa declamar esse texto de Catullo que fala muito das coisas brasileiras, mostrando um pouco da música, da maneira de ser das pessoas. É um texto brasileiro", disse o ator.

Trabalhos no Brasil

Formado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, parou de lecionar para seguir a carreira de ator, pois ganharia mais. "A cultura no Brasil sempre foi considerada um artigo supérfluo, sempre houve arremedos de política cultural, porque nem na educação há muito investimento. Eu desisti de ser professor porque como ator eu ganhava mais dinheiro. Durante algum tempo eu lecionei e atuei ao mesmo tempo em Belo Horizonte", completa.

Mayer comentou a respeito da dificuldade de se fazer teatro e se sua popularidade ajudou para conseguir apoio na produção do espetáculo. "Há muita dificuldade de patrocínio. No meu caso não facilitou eu ser popular e conseguir o apoio. O Estado se omite da produção cultural no Brasil. A popularidade você tem com a platéia e não com o empresariado que atende principalmente ao mercado", disse o ator, que completa 40 anos de carreira em 2008.

Quanto ao cinema nacional, ele é totalmente a favor de que se mostre a realidade do país como nos filmes Cidade de Deus, Querô e recentemente Tropa de Elite. "Muitos dizem ´Não pode abordar isso no ponto de vista da polícia´, mas a possibilidade de expressão da arte é absolutamente livre, ela pode falar o que ela bem quiser, porque enquanto ela estiver fazendo isso ela cumpre o desejo da platéia, e qualquer temática é de interesse do brasileiro", opina.

José Mayer e Antonio Pedro Borges
Foto: Guga Melgar
Em 2000, a última vez que esteve atuando em São Paulo, quando trabalhou ao lado de Renata Sorrah em Mais perto ( Closer), foi devido a outros trabalhos, na televisão principalmente, que o afastaram do teatro. Voltando agora com esse espetáculo, que une poesia e música, Mayer espera que o texto seja aproveitado por outros grupos e que exercitem o uso da poesia no lugar da prosa. "O texto de Catullo é povo puro e pode ser montado por outros grupos, apontando para uma direção teatral pouco exercitada pelo teatro brasileiro, mas que agora pode ser estudada com mais dedicação pela nova geração de atores", comenta.

Para a produção do espetáculo, Mayer teve que recusar o convite para atuar na novela Duas Caras, onde faria o papel de Juvenal Antena, que é interpretado por Antônio Fagundes. "Foi com pena que eu recusei Juvenal Antena. Aguinaldo Silva (autor da novela) escreveu esse personagem pensando em mim, mas eu já estava com o projeto em andamento. E o povo me deve essa, por ter trago Antônio Fagundes de volta para as novelas", brinca.

Quanto ao fato de seus últimos personagens serem desonestos, traidores e agora fazendo um personagem popular, cultural e totalmente diferente do que o público está acostumando a ver, Mayer finaliza que "em se tratando da imagem que o público normalmente tem de mim, interpretar o Boêmio, um personagem surpreendente, foi somente favorável, porque o grande gosto do ator é surpreender a platéia, é um prazer indescritível".

Um Boêmio No Céu
SESC Vila Mariana - Rua Pelotas, 141 (11)5080-3000. Ingressos à venda em todas as unidades do SESC, de terça a sexta, das 9h às 21h30. Em cartaz de 19 de outubro a 18 de novembro.


Atualizado em 12 Abr 2012.