Guia da Semana

Por Ruy Filho



Carlos Alberto Soffredini (1939-2001), santista, construiu uma carreira norteada pela experimentação da linguagem teatral com o circo. Formado em letras, a adaptação era uma das suas qualidades. Mais Quero Asno Que Me Carregue Que Cavalo Que Me Derrube é um desses textos reconstruídos, cujo estímulo veio de A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente.

Em nova montagem, com direção assinada por sua filha, Renata Soffredini, o espetáculo é apresentado sem ritmo e revisão. O texto não vai além de aspectos comerciais para a exploração do gênero cômico, sem maiores performances entre os dez atores do elenco, nos quais a falta de conceitos reduz o espetáculo a valores escolares de produção e apresentação.

A questão evidenciada aí é outra, porém, que não a pouca qualidade. O espetáculo integra os beneficiados pela Lei de Fomento, conforme indica o logotipo no cartaz. Fruto certamente de um projeto justificado na importância do repertório de Soffredini, sem a menor preocupação em qualificar os objetivos artísticos. Nada mais parece ser a montagem que mero pretexto para a obtenção do apoio financeiro. Mas posso estar sendo cruel, enquanto o que se tem é apenas mais um espetáculo mal dirigido, com elenco fraco e imaturo. Afinal, nem todos os financiados pela lei são caça-níqueis.

O Fomento surgiu nos últimos anos como instrumento de valorização de grupos de teatro e mecanismo possibilitador do continuísmo e aprofundamento das pesquisas de linguagem. A seleção por currículo dos grupos elegeria sempre os mesmos, então a solução encontrada foi expandir à comunidade acrescentando a proposta da pesquisa em si como interface maior de análise.

Desde então, a cidade acompanha a corrida na formação de grupos cujo único intuito é se adequarem as normas da lei, no sonho de abocanharem uma parte dos recursos distribuídos.

O que pareceu ser uma decisão acertada, no entanto, revela-se um tiro no pé, quando vemos os resultados das tais propostas. Assim como em Mais Quero Asno Que Me Carregue..., bons projetos escritos, com boas apresentações e supostamente bem fundamentados, ainda que sem conteúdo real, acabam por desperdiçar os recursos públicos, ínfimos, na verdade, em montagens onde a experimentação estética e o aprofundamento da pesquisa são inexistentes.

Muitos grupos amadores não conhecem os macetes da escrita de um projeto, e acabam abandonados por vezes com ótimas propostas nas mãos. Portanto, é preciso encontrar outra maneira de seleção. Que os jurados convidados sejam freqüentadores dos teatros, dos ensaios, dos grupos. Que se converse com artistas, levantando e questionando suas idéias, em público, sem o envolvimento pessoal ou histórico.

O Fomento de Teatro só conseguirá efetivar o que se propõe quando a hipocrisia dos artistas interesseiros for desmascarada, e quando a política cultural tiver de fato um desenho de sua finalidade.

O que se vê é a manutenção de um sistema falho, bom para aproveitadores, ótimo para seus idealizadores, mantido como mecanismo de substituição da necessidade de se pensar politicamente a cultura dentro de um projeto de governo ideológico mais amplo.

Enquanto isso não ocorre, ficamos à sorte da capacidade e responsabilidade de quem é aprovado. Os resultados estão por aí.

Quem é o colunista: Ruy Filho.

O que faz: diretor e dramaturgo.

Pecado gastronômico: carpaccio de pato do Piselli.

Melhor lugar do Brasil: Salvador fora de temporada.

Fale com ele: [email protected]

Atualizado em 6 Set 2011.