Guia da Semana

Foto: Divulgação

Uma mistura de um pouco de tudo, de mímica à teatro físico, de desconstrução da palavra à coreografias quase circenses. É assim que se revela, logo de início, o espetáculo Superiores, do carioca Grupo In-animados. Uma coletânea de referências recentes que bem pode ser traduzida como sendo a junção entre FormiguinhasZ e O dia em que a Terra parou. O projeto de encenar uma ficção científica ganha sabor ao tempo. É preciso estar disposto que, ao ritmo do espetáculo, a narrativa se revele e possa levar o espectador a se aventurar. Mas o que parece ser uma dificuldade narcisista, ao ser compreendida, mostra-se essencial, com capacidades criativa e técnica singulares.

Com um elenco irregular, porém cúmplice ao projeto e disposto fazê-lo valer a pena, a direção de Miguel Thiré, também dramaturgo, traça um painel interessante sobre como podemos nos relacionar com o contar histórias sem que sejam obrigados ao óbvio tão explorado ultimamente. Thiré descortina a fabricação da cena, dos personagens, do processo e traduz de maneira singular o confronto entre a humanidade e seus supostos superiores e inferiores.

Um espetáculo que é suposto na medida em que a posição em si é determinada a partir do parâmetro de quem se coloca ao centro, e isso é bastante relativizado, durante toda a narrativa. São planos que se congelam. Frames que se sobrepõem. Segundos relidos por outros ângulos, por cantos, por estados, por dimensões. A forma inteligente como redimensiona os personagens, ora agigantados para aqueles que representam, ora diminutos, faz com que o ritmo do espetáculo seja sempre a expectativa da próxima solução cênica. A infantilização dos gestos e das soluções dramáticas, propositadamente trazidas ao ridículo, dá o sabor cômico àquilo que se mostra dramático. Superiores é desses espetáculos cuja pretensão dá-se no querer reencontrar o teatro. E isso por si só já o torna um valor único.

Quem disse que para ser experimental, um trabalho necessita ser insuportavelmente intraduzível? Superiores encontra na facilidade do enredo simples dos filmes mais comerciais de ficção científica os artifícios perfeitos para fazer da cena um real experimento teatral, tanto para o ator quanto para o público.

Duas coisas me instigam quando resolvo assistir a uma peça: qual é a história e como ela será contada. A frustração ocorre apenas quando ambos os pontos são improdutivos, quando uma narrativa óbvia é trazida à cena de maneira mais óbvia ainda. Em Superiores, a obviedade da narrativa serve ao deleite de descobrir pelo contar a originalidade da inquietação artística da trupe. E isso é fundamental para conduzir a percepção a outros labirintos. O dentro do dentro já fora amplamente explorado na literatura e no cinema de maneira a não construir mais qualquer novidade estrutural, contudo, não no modo como Thiré o propõe. E encarar esse desconhecido faz do espectador um cúmplice mais pertinente, mais envolvido e fundamental ao riso fácil e bem-vindo.

Superiores fala da opressão, da submissão artificializada pela força que aplicamos e sofremos nos dias de hoje. Recoloca o Homem numa dimensão intermediária, mas não apenas no seu sentido literal de "inferior" com extraterrestres "superiores". Arregaça as mangas e salta pra cima da liturgia do Poder institucionalizado pelas convenções sociais, dos discursos impertinentes e desnecessários. Troca a palavra pela conveniência de estruturas sonoras individualizadas, acrescidas de pequenas indicações de seus sentidos no nosso idioma, ou melhor, naquilo que denominamos ser nossa língua.


A onomatopeia, presente desde a entrada dos atores em cena, ganha condições de interpretações ao quase reconhecimento dos fraseamentos, da ótima mimese das circunstâncias e da eficiente direção e escolha de como conduzir tudo sobre o palco. Atrás de uma linha desenhada, ainda na primeira cena, os personagens são atores novamente, e esse vai-e-vem quase brechtiano de nos avisar todo o tempo que o círculo central é uma encenação, amplifica ainda mais a dimensão ficcional da narrativa. O que assistimos é a 'ficionalização' de uma ficção, a 'teatralização' de uma mentira. Entretanto, os seus dizeres são, antes de tudo, a tradução da mediocridade do homem contemporâneo em sua certeza ilusória de superioridade sobre tudo e todos.

Um único objeto é trazido à cena, uma caixa transparente retangular. E nada mais pertinente para uma montagem esvaziada de outros códigos que uma caixa transparente dentre da caixa preta do palco.

A peça peca apenas na escolha dos figurinos e valeria um pouco mais de carinho e cuidado por aí, mas, ao fim, de que servem as roupas senão para construir valores e redesenhar sistemas igualmente de superioridade?


Quem é o colunista: Ruy Filho.

O que faz: Diretor e dramaturgo.

Pecado gastronômico: Carpaccio de pato do Piselli.


Melhor lugar do Brasil: Salvador fora de temporada.


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Atualizado em 6 Set 2011.