Guia da Semana

Foto: Bruno Cesar Dias

O artista em apresentação na Caixa Cultural, em São Paulo

Sua primeira apresentação profissional foi aos nove anos e, aos 11, ganhou seu primeiro concurso e o título de gênio do piano. Depois, vieram a formação no então prestigiado Conservatório Tchaicovsky, em Moscou, e um sem número de apresentações nas maiores e melhores salas de concerto do mundo. Com esse talento e currículo, o pianista Arthur Moreira Lima, hoje com 70 anos, poderia se dar o luxo de cobrar o mais alto dos cachês e selecionar os palcos e o público para qual se apresenta. No entanto, a profunda ligação do artista com a cultura e o povo brasileiro o levaram a outros caminhos.

E esses caminhos são marcados pela alegria dos rostos dos moradores provenientes das menores e mais ermas cidades do país quando ouvem as apresentações do artista no projeto Um Pianista pela Estrada.

O palco ele carrega no seu Scania adaptado, um caminhão-baú com 14 metros de comprimento que o pianista comprou por conta própria, quando iniciou a aventura, em 2003. Quando aberto, o baú dá espaço para um palco de 45 m² sobre o qual ele esbanja talento e sensibilidade na execução de peças extremamente exigentes, como Polonaise, de Chopin, e Adiós el niño, de Astor Piazolla, tema conhecido do grande público como o tango de abertura da minissérie Presença de Anita, exibida pela Rede Globo em 2001. Das teclas do piano, um instrumento de cordas, Arthur Moreira Lima tira o característico som do acordeon.

Nas quase 400 apresentações já realizadas em oito anos viajando pelo Brasil, Moreira Lima afirma que descobriu um país melhor do que imaginava e no qual acredita. A declaração foi feita com a mesma humildade com que o artista recebeu as palmas na récita especial realizada no dia 19 de janeiro na Caixa Cultural da Praça da Sé, em homenagem aos 150 do banco estatal, na qual ele falou com reportagem do Guia da Semana sobre as ideias para o nono ano do projeto, suas expectativas com o cenário da cultura para 2011 e histórias e parcerias de uma carreira de 63 anos.

Guia da Semana: Em sessenta anos de carreira, como você percebe o interesse do brasileiro pela música erudita?

Arthur Moreira Lima: A população é sedenta de qualquer coisa que lhe dão e gosta da música clássica, gosta da música erudita. Trabalho diretamente nisso há muito tempo, desde os primeiros grandes concertos populares, que começaram no início da década de 70, com o projeto Aquarius. De lá até hoje, o entusiasmo do público se manteve o mesmo e é isso que mantém a minha disposição para entrar nessas histórias.

Como foi o início de Um Pianista pela estrada?

Arthur Moreira Lima: Antes não havia nada desse jeito, pois não havia meios técnicos para tal. Em 2003, decidi comprar o caminhão por conta própria, pois não dá para ir às fábricas e sair pedindo. Levei quatro anos para quitar o veículo. Fiz umas apresentações iniciais para avaliar a viabilidade, definir alguns detalhes e redigir o projeto. Só depois veio o financiamento e as parcerias com o governo federal, demais entidades e empresas. Atualmente, são dois caminhões, um principal e outro de apoio, e já chegamos a rodar com mais de 20 pessoas na equipe. Mas, o mais importante é mantermos nossa finalidade de tocar nas menores e mais distantes cidades, do sertão brabo do Nordeste ao Acre.

Como é a montagem do circuito de cidades e da seleção musical?

Arthur Moreira Lima: O repertório é basicamente o mesmo ao longo desses anos, com clássicos que viraram populares e populares que se tornaram clássicos. Já o roteiro de cidades é definido pela equipe, levando em conta os pedidos dos patrocinadores e das cidades que solicitam nossa presença. Nesses oito anos, só não fomos aos estados do Amazonas, Roraima e Amapá, pois é difícil chegar de caminhão. Mas já fizemos toda a linha de fronteira e outros lugares de difícil acesso.

Foto:Divulgação

O Caminhão Teatro, que já rodou mais de 22 estados brasileiro, chegará a marca de 400 apresentações neste ano

Como é a interface social do projeto?

Arthur Moreira Lima: Minha mulher e minha enteada (as dentistas Margareth e Grasiela Garrett) são responsáveis pelo projeto paralelo, batizado de Um sorriso pela estrada. No dia do concerto, elas e sua equipe vão às escolas da rede pública para ensinar as crianças a escovarem os dentes e cuidarem melhor da saúde bucal. Às vezes, levo um piano pequeno de armário e faço apresentações só para eles.

Quais são as novidades para o nono ano?

Arthur Moreira Lima: Começaremos pelo Sul do país, provavelmente em março. Depois vamos subindo, com várias apresentações no Grande ABC e demais municípios do entorno de São Paulo.

Qual é a cara do povo brasileiro você descobriu com o projeto?

Arthur Moreira Lima: Quem se aventurar a fazer algo parecido vai perceber que as coisas são muito melhores do que a gente pensa. O Brasil tem passado por grandes avanços nos últimos anos. Estamos consolidando uma posição no cenário econômico e internacional, e isso reflete numa série de coisas, inclusive no brio da população. E é um barato, pois descobri que essas pessoas têm suas próprias culturas locais, ainda não estragadas pela globalização.

Você sempre foi muito ligado à política, expressando suas opiniões e posições. Como avalia as ações culturais da gestão Lula e qual a expectativa em relação ao novo governo?

Arthur Moreira Lima: Comecei o projeto em 2003. Não tinha tentado fazer nada parecido a isso antes, mas sempre senti imediata aprovação e entusiasmo às propostas por mim apresentadas e, dentre elas, o Piano na Estrada. Faço fé das decisões da nova mandatária, que representa uma posição progressista e preocupada com as questões sociais.

O que mais te preocupa hoje?

Arthur Moreira Lima: Olhe, a rapidez com que as coisas se sucedem atualmente, principalmente na questão climática. Isso realmente é preocupante, pois se acaba dando um jeito nessas desavenças de Coreia do Norte, Irã, Estados Unidos... Já com a natureza não tem como negociar. Alguém pode impedir um terremoto, um tsunami?

Aos 70 anos, como você avalia sua trajetória na música erudita?

Arthur Moreira Lima: De uma certa maneira, não tive muita escolha, pois desde criança eu vivo o piano, apesar de ter estudado no Colégio Militar e ter tido uma vida "normal" até os 17 anos. Depois fui estudar na França, Moscou e em tantos lugares. Achei que valia a pena investir nisso, dedicar a vida a isso. Uma vez, uma senhora me disse que daria a vida para tocar como eu. E, de fato, dei minha vida para tocar assim. Houve muita dedicação. Quantas vezes as crianças estavam brincando e eu estudando? Nunca foi de muito estudar, mas o mínimo eu tinha de fazer.

Com seu currículo, talento e história, você poderia escolher em quais casas tocar e ter toda a infraestrutura exigida pelos artistas internacionais. No entanto, viaja pelo país e se apresenta nem sempre nas melhores condições. O que passa pela sua cabeça quando você pensa nisso?

Arthur Moreira Lima: Gosto e escolhi essa vida, pois já vivi o outro lado. Sempre fui um solista, o que leva o artista a ser muito solitário. Percorri o mundo sozinho de 1963 a meados da década de 80 em grandes turnês internacionais. É prazeroso, mas é extremamente cansativo, pois você passa a maior parte do tempo sozinho e nem sempre todas as locações oferecem estrutura. Com o caminhão é diferente, é uma casa com rodas. Mas o bom mesmo é poder variar.

De toda a carreira, quais são as melhores lembranças?

Arthur Moreira Lima: Quando voltei ao Brasil, fiz experiências com a música popular e gostei muito de compor e produzir em parceria. Dessa leva saíram Consertão, com Paulo Moura, Elomar e Heraldo do Monte; Pescador de Pérolas, com Ney Matogrosso, e um dos meus discos mais bonitos, O boêmio & O pianista, com Nelson Gonçalves. Fizemos mais de 50 apresentações, entre divulgação e concertos. Me diverti muito, ele era uma figura maravilhosa.

Confira parte de uma das apresentações de Arthur Moreira Lima nos concertos Um Pianista pela Estrada

Atualizado em 1 Dez 2011.