Guia da Semana



Um movimento em três partes. Um tríptico onde as unidades somente se fazem verbo na soma da conjunção. Assim deveria ser tratado o primeiro encontro da Universidade Antropofágica, comanda por Zé Celso, em um dos andares do Sesc Paulista. Útero provisório de seu mais novo rebento, cujo parto aguardamos ansiosamente junto à construção da expansão do Teatro Oficina, em belo projeto de Paulo Mendes da Rocha, se não me engano.

Uma peça-performance, um almoço ritualístico, uma roda de conversa. O encontro recriara o sentido do banquete socrático em suas múltiplas facetas: a exposição, a devoração, a comunhão, buscando desconfigurar alguns preceitos básicos do processo acadêmico. As rodas dão nova forma à quadratura das salas universitárias, à mesa burguesa patriarcal, à cena teatral distanciada de imediata relação. Círculos. Circular. Em sua dupla vontade: permear os contornos em contínuo processo de expansão; mover-se em detrimento à vontade e ao desejo. Como amplo também passa a ser o sentido de Universidade antropofagiado em seu academismo francês submetendo-o ao contexto do múltiplo, do universal.

Zé Celso é hoje possivelmente um dos artistas mais coerentes. Reflete sua origem uspiana, das elaboradas ciências sociais que fundam o pensamento da instituição paulistana - existente nas cabeças mais influentes do Direito do largo franciscano, faculdade qual freqüentara -, ao se voltar ao comum, ao social, e procurar nele as causas e motivações para re-entender o homem. Reflete ainda o inconformismo com as circunstâncias determinadas e imóveis, com as ideologias bem aparadas em discursos eloqüentes, tal qual fora a motivação para a criação do Oficina, resposta dada ao movimento esquerdista operariado de Arena-Guarnieri, da massa estudantil, conduzindo-o a surras físicas e intelectuais por público e polícia, manifestantes de quaisquer lados.

E é o único a tratar um movimento de comunhão entre estética e vida anônima, entre a arte e o indivíduo. Onde começam e terminam cada um? Impossível responder. Solução desnecessária, inclusive. A proposta de erguer uma universidade antropofágica nasce como um desafio aos padrões, ou aos tabus, para usarmos os termos expostos no encontro. Que outro movimento tem por premissa o diálogo com as diferenças? De alguma maneira ainda criamos e desenhamos nossos discursos entre as esferas da moral, numa postura falsamente contestatória quando o que mais importa é a relevância de uma posição sobre qualquer coisa. Somos contra ou a favor. Gostamos ou não. Aceitamos ou repulsamos. Condenamos ou exaltamos. Somos assim, bipolarizados frente a decisões, à história, a nós mesmos. Zé Celso não mais. E gera da expectativa de um diálogo infinito despreconceituoso uma terceira via de observação: dialogarmos entre oposições, por dentre extremos.

Propõe o desapego ao impermeável, ao isolamento, ao individualismo latente no contemporâneo mundializado, e traz o nu como simbolismo freudiano, tendo a roupa como intermédio. Despimos nossas idiossincrasias, as valas comuns das morais burguesas cristão-judaicas, dos ´não permitidos´, das falas corretas e ausência política. Quando ali, exposto, o homem passa a ser apenas a si mesmo, sem artifícios e construções. Pouco importa suas crenças, idéias, o trajeto. Nus, o que enxergamos, é no outro o reflexo de nós mesmos num espelho incapaz de nos submeter a alguma classificação. Ainda que, para tantos que no encontro estavam, estar nu represente apenas estar sem roupa.

Zé Celso faz parte de uma geração que perdera o direito de existir, de ser o que bem entendesse, de falar e sentir algo não planejado pelo sistema. Nada mais coerente, portanto, que sua aproximação dos tabus insistentes em nos manter calados. Mas nem tudo é tão óbvio. E aos poucos se percebe um distanciamento absoluto da busca por compreender o artista. Não são os jovens de agora os mesmos de seu tempo. E não por ter iniciado seus trabalhos há 50 anos. Pelo contrário. Não estamos prontos para Zé Celso ainda. Não estamos prontos para um diálogo sem julgamentos, para compreensões ao invés de questionamentos unilaterais. Zé Celso não é para agora, e por isso mesmo é dos quem mais precisamos.

No início do terceiro banquete, roda retórica, parte última do tríptico, poucos minutos foram necessários para que tangenciasse a fala de Zé Celso um desesperado apelo para que interrompesse a "aula" e voltasse às discussões objetivas. Quais, afinal? O que não estava sendo discutido? Não, nada disso. A discussão interrompida fora retomada pelo entorno em fonemas de discursos, pela velha e boa obrigatoriedade da tomada de posição sobre tudo, todos, e no fundo sobre nada. Calorosas manifestações contra isso e aquilo, aquele e o outro. Sentado, observando tantas e tantas opiniões e os apreços narcisísticos que quase sempre são os reais motes para se aproximar dos microfones, assisto Zé ser calado, sistematicamente, por público, por atores, por aqueles que se julgam artistas, e mesmo alguns dos seus, todavia incapazes de perceber estarem, tanto quanto os sistemas condenados, manipulando as circunstâncias em proveitos próprios, em processos terapêuticos de uma catarse ficcional, elaborada e planejada com hora marcada para ter fim.

"Por que tanta necessidade em tomar uma posição, e não se dialoga com o tudo o que está aí?" fora a pergunta que levara Zé Celso a me puxar ao centro da roda e dar-me o microfone às mãos. Não a fiz, pois não havia na multidão qualquer ouvinte, e a pergunta esvaziou-se entre eu e ele, enquanto retornávamos ao banco de madeira.

Façamos! Gritemos! Somos contra! Não queremos! Queremos! Exigimos! Não aceitamos! Não devemos! Confessa a necessidade de atitude, a juventude presente. Expurga inconformismos. Exalta a ação e a posição. É preciso agir. É preciso modificar. É preciso romper. Jogar fora. Reiniciar.

Doce, silenciando os tumulto, uma voz diz: "precisamos deixar o sol entrar...". (As janelas das salas, veladas por películas próprias ao impedimento da luz externa, para compor uma melhor estrutura ao espaço cênico, rodeiam a todos). Uma nova comoção. E Zé controla a massa bovina de esquerdismo fabricado em banca de jornal, a compreender que retirar o hímen deveria ser um ato de amor, simbólico gesto-manifesto tradutor da busca de dialogar o dentro com o fora, a arte com a sociedade, o artista com o mundo, e não apenas vandalismo heróico.

É dada a chance do discurso se tornar fato. Fazer, dizer, construir, querer, mostrar, ser. Uma tesoura sobre a mesa. Uma vela acesa. Vinho no cálice. E as janelas indefesas, desprotegidas, disponíveis a quem por ela quisesse de fato traduzir anseio em manifesto. Para todos que até então se rebelavam. Para todos que até agora exigiam de Zé o que entendem por posicionamento. Para todos que até ali se negavam a aceitar antropofagiar a si mesmo.

Uma janela. Uma tesoura. Dezenas de discursos políticos e artísticos.

Meia-hora depois sumiram as bolsas e mochilas. Não mais se ouvia as vozes. O espaço se preenchia de ausência. E a janela permanecia inviolada... ...

Universidade Antropofágica. O tudo, o todo, todos. E por que não?

Afinal, se alguma lição pôde ser tirada do encontro, é de que discursos não vão além de palavras.

Quem dera a inquietude de Zé Celso se tornasse, sob infinitas formas e maneiras, a mais dialética das melhores contradições.

Parabéns, Zé. Sigamos como der.

Leia as colunas anteriores de Ruy Filho:

? Como lidar com os códigos dramáticos frente as modificações feitas em montagens de clássicos?


? A contemporaneidade de uma tradição


? Closer


? Gob Squad


? O teatro de Henrique Diaz


? Mais Quero Asno... e os recursos do fomento


? El Chingo e os fantasmas de cada um


? Com prosecco e qualidade


? O teatro candango e a morte de todos os dias


? Entre o silêncio e a mudez


? A ciência como pretexto dramático


? A alma decepcionada frente à realidade


Quem é o colunista: Ruy Filho.

O que faz: diretor e dramaturgo.

Pecado gastronômico: carpaccio de pato do Piselli.


Melhor lugar do Brasil: Salvador fora de temporada.


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Atualizado em 1 Dez 2011.