Guia da Semana



Apesar das qualidades de O Cheiro do Ralo, é nítido o amadurecimento de Heitor Dhalia em À Deriva. O filme acompanha Felipa, jovem de 14 anos, alter ego do cineasta, já que o roteiro tem inspiração autobiográfica. Em viagem de férias para uma praia idílica, ela presencia a crise do relacionamento de seus pais, o caso extraconjugal do pai e, em meio a esse caos familiar, começa a descobrir sua sexualidade.

A atriz estreante, descoberta pelo Orkut, consegue traduzir as emoções de Felipa no olhar, apesar de demonstrar limitações na impostação da voz. Débora Bloch está madura e plena no papel da mãe alcoólatra. Porém, a escolha da norte-americana Camilla Belle parece um tanto problemática. A atriz é muito nova para interpretar a amante de Mathias, pai da protagonista, e isso transparece na tela. Mas sua escalação, assim como a do francês Vincent Cassel para viver o pai, é justificada pela pretensão do diretor de alçar voo no mercado internacional.

A personagem de Laura Neiva é uma espécie de Lolita, que mistura inocência e forte sensualidade. A opção por uma menina para protagonista, em vez de um menino, que se aproximaria mais da experiência de vida do cineasta, resulta em um ganho dramático notável. O longa induz de forma sutil um Complexo de Édipo mal resolvido entre Felipa e seu pai. Os dois têm um relacionamento muito próximo, até que a jovem descobre sua infidelidade. Mathias estaria não só traindo a mãe, como principalmente a filha, levando em conta a interpretação psicanalítica. Este sentimento faz com que Felipa vá diversas vezes espioná-lo, chegando a assistir a uma das cenas de sexo que ele tem com a amante. Fora à relação edipiana, o acontecimento estilhaça a imagem heróica do pai, construída pelos filhos de forma geral.

Todos esses conflitos se agravam, pois a jovem está na puberdade, fase de transição crítica por si só. Depois de se relacionar com um menino da mesma turma e idade, a protagonista elege o barman, interpretado por Cauã Reymond, para perder a virgindade. Além de ser mais velho, o personagem teve um caso com a amante de Mathias. A partir da lógica de análise, não seria leviano afirmar que a escolha de Felipa reflete um desejo inconsciente de se colocar como possível parceira sexual para o pai. A perda da virgindade, símbolo máximo da passagem da infância para a idade adulta, também demonstra a vontade da personagem de se libertar da imagem de criança.

Além de um roteiro muito bem engendrado, Heitor Dhalia demonstra habilidade em aproveitar o tempo, abdicando da pressa que dita muitas das produções contemporâneas, e o potencial do cenário, realizando notáveis tomadas de Felipa e suas amigas na água e da geografia litorânea. A trilha sonora contribui para a construção dramática do filme. O tema musical condutor de À Deriva tem notas de piano que remetem imediatamente às de Central do Brasil, o que não é apenas coincidência, já que Antônio Pinto é o autor de ambas as trilhas, assim como as de Nina, Terra Estrangeira, Abril Despedaçado e Cidade de Deus.

Essa confluência de acertos alcança seu nível máximo na sequência final, que recria uma sensibilidade característica dos filmes de Walter Salles, em que, logo depois de se relacionar com o personagem de Cauã Reymond, Felipa desce do barco conduzida pelo personagem, nada até chegar à orla e encontra o pai, que estava procurando-a há tempos. Neste instante, o cineasta nos agracia com uma das mais belas cenas do cinema nacional contemporâneo. O diretor filma-a de cima, com calma, e vemos os dois em um longo abraço enquanto as ondas fazem marcantes desenhos na areia ao som da magnífica música. Grande passo de Heitor Dhalia.

Quem é a colunista: Jornalista e cinéfila Cyntia Calhado.

O que faz: Repórter do Guia da Semana.

Pecado gastronômico: Pizza, chocolate, açaí...

Melhor lugar do Brasil: Onde se tem paz.

Melhor filme que já assistiu até hoje: Como é impossível escolher um, fico com a obra dos diretores Pedro Almodóvar e Eric Rohmer

Para falar com ela: [email protected] ou acesse seu blog ou site

Atualizado em 6 Set 2011.