Guia da Semana

Foto: Getty Images

Esta semana, uma pessoa me perguntou por que os críticos costumam gostar de filmes que ninguém gosta - e muitas vezes nem conhece - e desprezar os filmes que fazem grande sucesso e que todos gostam. Foi uma resposta complicada, até porque a pergunta tinha uma certa esteriotipação da figura do crítico e um certo simplismo na questão gostar/não gostar. Mas foi pertinente, pois é o que muita gente se pergunta e, a resposta, tive que buscar na minha própria experiência.

A primeira vez que assisti ao filme Cidadão Kane foi em 1996. Achei um filme muito bom, mas, francamente, na época, não entendi porque havia todo um culto em torno dele, nem conseguia ver o que fazia dele um fenômeno tão forte, capaz de mantê-lo por décadas no topo de todas as listas de melhores filmes da história. Afinal, com exceção de uma ou outra cena de ângulo "estranho", não vi ali nada de diferente de tudo que já havia visto antes em outros filmes.

Hoje sei que o que me faltava na época para entender Cidadão Kane, em toda sua importância e genialidade, era algo que chamo de "dimensão da coisa" que, no caso do cinema, só adquiri muito tempo depois. Mas que dimensão é essa?

Vinicius de Moraes, o capitão do mato, poeta e diplomata, tem um poema chamado O Operário em Construção. Nesse poema há uma estrofe que diz:

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão.
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

No poema de Vinicius o que ocorre com o Operário é o que se pode chamar de epifania; a descoberta súbita de algo que mudará completamente sua compreensão do mundo ou de determinada coisa. A partir daí, para o Operário, tudo ganha outra dimensão, muito mais ampla, abrangente e profunda. É o que chamo de "a dimensão da coisa".

Com o cinema, no meu caso, foi parecido. Mas ao contrário de uma epifania, súbita e reveladora, essa dimensão só veio com o tempo e com o estudo da sétima arte. Antes de iniciar meus estudos de cinema, como era o caso da primeira vez que vi Cidadão Kane, não tinha a devida dimensão do cinema, de sua linguagem, de sua formação e de sua história. Não que hoje eu seja "douto" nesse assunto, mas meus estudos me levaram a conhecer o fundamental que, somado à experiência de assistir aos filmes também fundamentais, permitiram um melhor dimensionamento do cinema que vejo hoje. E foi a partir disso - dos estudos e dos filmes vistos - que me tornei mais seletivo, mais crítico e mais criterioso com o que vejo.

E isso, acreditem, é um processo natural e não uma impostura falaciosa, nem uma tentativa de ser (parecer) mais inteligente ou melhor do que os outros, quando o assunto é cinema.

Vou dar um exemplo. Certa vez, vi um amigo meu que entende muito de artes plásticas se irritar com a exaltação das pessoas para uma obra de artesanato de feirinha de rua. Dizia ele que aquilo era artesanato, não arte, e a pessoa que tinha feito o quadro era artesão, não artista. Achei muito interessante essa distinção. Certamente este meu amigo, ao ver uma pintura de artesanato, sabe reconhecer quais elementos faltam ali para que se possa considerar aquilo arte, da mesma forma que ao ver um quadro de Pablo Picasso sabe reconhecer nas cores, nos traços e no conjunto, quais elementos fazem daquele quadro uma obra de valor inestimável.

Eu, que pouco conheço do assunto, talvez não veja no quadro de Picasso tudo aquilo que se diz de valor artístico, como também, por ser ignorante no assunto (e não há demérito em sê-lo), posso achar o artesanato de rua uma coisa lindamente artística. Falta-me, nesse caso, a dimensão da coisa, algo que só o estudo e o aprendizado de sua história e evolução podem dar. O fato desse meu amigo distinguir criteriosamente uma coisa da outra, colocando cada uma em seu devido patamar, não faz dele um chato preconceituoso com o artesão, apenas alguém que ao conhecer um pouco melhor a dimensão da arte plástica, passa a ser, naturalmente, mais seletivo. Não o faz para ser arrogante ou exibido, mas apenas porque seu gosto é mais exigente, justamente por entender e saber colocar em perspectiva cada um dos fatores envolvidos.

Não é diferente com o cinema e a crítica em geral. Ao se adquirir dimensão histórica da linguagem, das formas, dos princípios narrativos, do jogo de cena, da estética fílmica, do universo temático, dos recursos artísticos e das grandes obras dos grandes diretores, fica mais difícil gostar de filmes banais, feitos apenas para entreter e que muitas vezes nem isso conseguem.

Tornar-se seletivo, depois de adquirir a tal "dimensão da coisa" não é uma opção, é inevitável. E isso vale para qualquer área do conhecimento, das artes, da vida. E é isso que explica porque os críticos têm essa fama de ranzinzas, de não gostarem de nada. É que depois de certo ponto não há mais volta. E aí fica quase impossível ver um filme como, por exemplo, Lua Nova, e achar algo de interessante nele. Por outro lado, ver pela enésima vez um filme como Noites de Cabíria (Fellini) ou Aurora (Murnau), pode ser uma experiência muito mais prazerosa e enriquecedora.

Leia as colunas anteriores de Rogério de Moraes:

Marco para o cinema

Para atrás das câmeras

Estilo para todos os gostos

Quem é o colunista: gordo, ranzinza e de óculos.

O que faz: blogueiro, escritor e metido a crítico de cinema.

Pecado gastronômico: massas.

Melhor lugar do Brasil: qualquer lugar onde estejam meus livros, meus filmes, minhas músicas, meus amigos e minha namorada.

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Atualizado em 6 Set 2011.