Guia da Semana

Foto: Getty Images

Em 8 de janeiro de 1990, comecei a trabalhar em meu primeiro emprego de verdade. Através de um programa de preparação de jovens de comunidades carentes para o primeiro emprego, consegui uma vaga como "copyboy" em um prédio que ficava na Avenida Paulista, em São Paulo.

No trajeto do ônibus que eu pegava todos os dias estava a Rua da Consolação. Era ao passar por ela que eu via a fachada daquele cinema, que me parecia tão estranho. Estranho por ter tantos filmes em cartaz ao mesmo tempo. Estranho também pelos títulos dos filmes que exibia.

Naquela remota transição de década, minha noção de cinema se limitava aos filmes de ação, aventura ou comédia de Hollywood. Pancadaria, perseguições, tiros, explosões e roteiros simplórios faziam a alegria do meu entretenimento. Como grande parte das pessoas em um país, onde a cultura e a educação não são universais, achava que cinema era aquilo e pronto.

Naquele tempo, os shoppings ainda não haviam se espalhado tanto pela cidade e os cinemas de rua ainda tinham espaço. Cinemas multiplex, com suas dúzias de salas padronizadas e cheiro nauseabundo de pipoca com manteiga, ainda era coisa inédita por aqui. E era por isso que eu achava estranho aquele cinema, cuja fachada sempre mostrava muitos filmes em cartaz. Não entendia como aquilo funcionava. Mas entendia menos ainda os títulos dos filmes: 9/12 Semana de Amor, Bagdá Café, Conduzindo Miss Daisy, Faça a Coisa Certa, Ata-me, Cinema Paradiso.

A memória daqueles dias, da visão daquele cinema, de sua fachada e seus cartazes, vive ainda na minha lembrança como um tipo de descoberta e o aguçamento de uma curiosidade inexplicável. Descobria ali, ainda que superficialmente, a existência de filmes estranhos ao meu universo de cinema. E sentia uma forte curiosidade em vê-los, conhecê-los e entender do que tratavam. Viajava naqueles cartazes e tentava imaginar sobre o que seriam aqueles filmes. E o ônibus passava rápido diante do cinema e não dava sequer para ler os nomes de todos os seis filmes ali exibidos. Mas o fato é que tenho certeza de que foi ali, naqueles dias - e na estranheza e na fascinação que aquela fachada me causava -, que surgiu dentro de mim o interesse por um cinema diferente do comum.

Alguns anos depois virei um de seus frequentadores mais assíduos. Vi muitos filmes em todas as suas seis salas. Passei do fascínio pela estranheza ao fascínio pelo carinho e prazer de ter ali um espaço para os filmes que não tinham espaço em outros cinemas. Entendi com o tempo que tivera por aquele cinema um caso de paixão à primeira vista, tão inexplicável como qualquer outro caso desse tipo. Uma paixão consolidada depois pela frequência assídua e pela relação de carinho e amizade com ele e sua programação quase perfeita.

O cinema de que falo trata-se do Cine Belas Artes, quase esquina da Avenida Paulista com a Rua da Consolação. E que está prestes a fechar, pela segunda vez.

Acompanhei o declínio do Cine Belas Artes no final dos anos 90 e seu fechamento. Com imensa tristeza, vi São Paulo perder um dos poucos cinemas com programação "séria" da cidade. Mas, então, veio a luz. A reforma. O patrocínio. A reabertura. Em 2004, o Cine Belas Artes, com uma parceria entre as produtoras Pandora Filmes (do cineasta André Sturm) e O2 Filmes (do cineasta Fernando Meirelles) e junto com o banco HSBC, reabriu com lotação esgotada nas seis salas no dia da reinauguração.

De lá até então criou iniciativas dignas de muito aplauso em prol do cinema de arte e da história do cinema. Através de seu projeto, chamado Cineclube, o local exibiu diversos clássicos do cinema, que ficavam em cartaz durante uma semana, sempre no mesmo horário. No seu Noitão, lotava as salas com um público louco por cinema que pagava para passar toda a madrugada vendo filmes, da meia-noite até o sol nascer. É o único cinema que mantém certos filmes em cartaz por mais tempo, com horários diversos, sem deixar de estrear novos filmes, aumentando a diversidade de títulos bons em exibição na cidade.

Mas em março deste ano, o banco HSBC, por questões de reposicionamento mercadológico, rompeu o contrato de patrocínio com o Belas Artes. Só a venda de ingressos não basta para manter sua estrutura, com um aluguel que passa dos R$ 60 mil, funcionários e manutenção. Sem um novo patrocínio, o Belas Artes fechará suas portas daqui cerca de dois meses.

Se isso acontecer, mais uma vez a cidade e os amantes do cinema perderão um espaço cada vez mais escasso na cidade. Resta torcer para que até lá, alguma empresa demonstre interesse em preservar a cultura e o bom cinema.

Caso isso aconteça, talvez outros garotos, ao passarem diante daquela fachada, possam se fascinar com aqueles filmes estranhos que não passam em shopping. E talvez nasça daí, novos cinéfilos, que encontrarão no cinema fonte inesgotável de fantasia e sonho e também de realidade, capaz de dilatar nossa percepção do mundo, das coisas e de nós mesmos.

Leia as colunas anteriores de Rogério de Moraes:

Obra clássica

Travessia de Herói

Do seu tempo

Quem é o colunista: gordo, ranzinza e de óculos.

O que faz: blogueiro, escritor e metido a crítico de cinema.

Pecado gastronômico: massas.

Melhor lugar do Brasil: qualquer lugar onde estejam meus livros, meus filmes, minhas músicas, meus amigos e minha namorada.

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Atualizado em 6 Set 2011.