Guia da Semana



Recentemente uma amiga me perguntou se eu já tinha visto Ladrões de Bicicleta, de Vittorio De Sica (1948), que ela achava um dos filmes mais lindos do neo-realismo. Sim, já vi e também acho um filme lindo. Foi o gancho perfeito para falarmos sobre esse movimento que subverteu o foco narrativo e estético do cinema italiano, influenciando cineastas no mundo inteiro.

Ainda que desde 1914, com seu filme Perditi nel Buio, Nino Martoglio já lançava as sementes do neo-realismo, o que se considera como obra inaugural desse importante movimento do cinema italiano é Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rosselini, de 1945. Separando um filme do outro, estão mais de 30 anos, duas grandes guerras mundiais e a ascensão do fascismo.

Com o fim da 2ª Guerra Mundial, a Itália se vê devastada e alquebrada. O que está em ruínas não são apenas seus edifícios, mas também seu espírito. O neo-realismo é produto dessa constatação pós-guerra. Uma visão que, muito além da crítica ou do questionamento, se pauta pela explicitação da realidade.

São filmes a céu aberto, quase documentais, com improvisos do elenco e improvisos técnicos. Esse novo cinema apresenta o homem comum, do povo, e os problemas do cotidiano, como a fome, o desemprego, as dificuldades da vida. É um cinema que explora a dimensão do ser humano frente a uma realidade social e política adversa, frente à vida e suas pequenezas grandiosas, como comer ou conseguir trabalho. A câmera, a luz e o olhar se aproximam do registro documental, assim como muitos personagens, que interpretam a si mesmos. E é dentro dessa realidade, sem rodeios ou maquiagens, que se dimensiona o humano em sua grandeza e em sua perfídia.

Nesse início, o neo-realismo é também um reflexo quase metalinguístico, onde a precariedade da vida mostrada na tela é sintomática da mesma precariedade na realização do filme. Assim, a escassez de recursos se reflete na projeção e no que é projetado. Como em Roma, Cidade Aberta, em que Rosselini filmou com rolos de filmes de qualidades diferentes, o que se nota claramente na irregularidade fotográfica do filme; ou como em Ladrões de Bicicleta, cuja precariedade técnica é sempre perceptível. Mas isso em nada diminui a dimensão da obra e o retrato que ela faz de um tempo e do espírito de um tempo.

Mas o neo-realista, até como característica do povo italiano, não se presta ao sombrio, pois é um movimento que também reflete a esperança no recomeço. Diferente, por exemplo, do expressionismo alemão, que após a derrota na Primeira Grande Guerra surgiu recheado de um profundo e lúgubre pessimismo.

Mesmo assim, os filmes iniciais do neo-realismo não foram bem recebidos pelo público da época. Roma, Cidade Aberta, por exemplo, foi um fracasso de bilheteria. É que as pessoas, com a vocação natural das massas para a alienação e o escapismo entorpecente, simplesmente não queriam ir ao cinema para verem sua miséria refletida na tela. Foram os intelectuais que perceberam a grandeza daquele cinema que surgia, sua estética e dimensão, e o elevaram à condição de arte e de vanguarda.

Muitos filmes e diretores fundamentaram e deram grandiosidade a esse movimento estético, mas são três nomes que considero como os pilares desse cinema: Roberto Rosselini, Vitório De Sica e Luchino Visconti.

Rosselini realizou, além de Roma, Cidade Aberta, Paisá (1946) e Germânia, Anno Zero (1947); em 1948 Visconti filme La Terra Trema e De Sica define em absoluto o espírito do neo-realismo com sua obra-prima Ladrões de Bicicleta, de 1948, e também, na década seguinte, seu magistral Umberto D., em 1952.

Já nos anos 50, com a reconstrução da Europa e a recuperação econômica financiada pelo plano Marshal, o neo-realismo, como expressão da realidade, também teve de mudar, e seus principais diretores passaram a trazer para a tela questões existenciais e metafísicas. Foi a partir desse desdobramento natural do movimento que surgiram novos diretores do cinema italiano, como Federico Fellini, Michelangelo Antonioni e Píer Paolo Passolini, diretores que, calcados no neo-realismo, influenciaram e marcaram para sempre a história do cinema.

Quem é o colunista: gordo, ranzinza e de óculos.

O que faz: blogueiro, escritor e metido a crítico de cinema.

Pecado gastronômico: massas.

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Atualizado em 6 Set 2011.