Guia da Semana

O processo de escolha do candidato brasileiro para o Oscar 2017 daria um filme, com mais reviravoltas que todos os concorrentes juntos. No papel de protagonista, estaria “Aquarius”, novo longa de Kléber Mendonça Filho (“O Som Ao Redor”) que integrou a seleção oficial de Cannes em maio deste ano. Na ocasião, o diretor e sua equipe aproveitaram a visibilidade do tapete vermelho para empunhar cartazes com frases anti-impeachment.

O protesto parecia ter passado relativamente sem consequências até recentemente, quando o crítico Marcos Petrucelli foi eleito como um dos integrantes da comissão que escolherá o representante nacional no prestigiado prêmio norte-americano. Petrucelli se posicionara contra o filme desde o festival francês, quando acusou o cineasta de utilizar dinheiro público para a viagem. Os dois, desde então, trocaram farpas e cartas abertas, colocando o filme no centro das atenções.

A polêmica ganhou uma nova virada quando dois filmes – “Boi Neon”, de Gabriel Mascaro, e “Mãe Só Há Uma”, de Anna Muylaert – foram retirados da disputa por seus criadores em apoio a “Aquarius”. Mais tarde na mesma semana, dois jurados da comissão também se retiraram: a atriz Ingra Lyberato e o diretor Guilherme Fiúza Zenha. Em resposta, o Ministério da Cultura divulgou uma nota garantindo a “a seleção será feita à margem de critérios de natureza política”.

Foi em meio a esse furacão que Sônia Braga, protagonista de “Aquarius”, disparou no final da coletiva de imprensa sobre o filme em São Paulo: “Vamos pra rua!”. A atriz, é claro, se referia às manifestações políticas que marcaram os últimos anos no Brasil, mas também usava a expressão como um apelo à resistência diante de poderes econômicos que se impõem em detrimento da memória e da convivência. No filme, ela interpreta uma mulher que se recusa a vender o apartamento onde viveu toda a sua vida a uma construtora, representada por um jovem ambicioso (Humberto Carrão).

Não que Braga seja contra modernidades – muito pelo contrário, ela é adepta das redes sociais e comemora a velocidade com que a internet permite que um artista como ela se expresse publicamente. “São minhas palavras ali no Facebook”, sublinha. Como sua personagem, ela também guardava uma coleção preciosa de discos em vinil, mas, na vida real, acabou substituindo a maioria por versões digitais após perdê-los numa enchente. Às vezes, não são só os homens que destroem a memória.

Kléber Mendonça Filho, diretor e epicentro da discórdia, também falou à imprensa e revelou que acredita que os próximos anos trarão um cinema autoral muito mais ativista ao Brasil. “Momentos de tensão no país geram reações artísticas”, foram suas palavras. “Aquarius”, assim como seu longa mais célebre, “O Som Ao Redor”, já era uma reação à especulação imobiliária em Pernambuco e um registro crítico do que ele chama de “aristocracia de esquerda”. Daqui para a frente, porém, a tendência é que o tom político ganhe mais força – especialmente, ele diz, se forem colocados obstáculos à produção cultural.

Outro ponto controverso da trajetória de “Aquarius” foi a classificação indicativa de 18 anos*, divulgada nos últimos dias pelo Ministério. O filme, de fato, traz algumas cenas explícitas de sexo e nus frontais, mas o diretor não concorda com a rotulação. “Se você pegar uma safra recente de cinema brasileiro – 'Boi Neon' [16 anos], 'Para Minha Amada Morta' [14 anos], 'Bruna Surfistinha' [16 anos], 'Tatuagem' [16 anos], que são filmes que encaram a sexualidade de maneira franca –, eu não acho que 'Aquarius' seja mais chocante ou... Eu não acho que 'Aquarius' mereça estar na mesma prateleira de 'Ninfomaníaca' ou 'Love 3D'.

Apesar da classificação, o cineasta parece estar levando a melhor com toda a polêmica. O timing, afinal, foi perfeito: apenas uma semana antes da estreia, “Aquarius” se tornou o filme mais comentado na mídia e isso, provavelmente, se refletirá nas bilheterias. “A partir de agora, as pessoas vão poder discutir tendo visto o filme” – declarou, alfinetando seu agora arqui-inimigo Petrucelli (que afirmara não ter assistido ao longa).

Não sabemos como esse drama todo vai acabar, mas o roteiro bem que merecia um Oscar.

*Atualização: no dia da estreia, o Ministério da Justiça reconsiderou a classificação e alterou a censura para 16 anos.

Por Juliana Varella

Atualizado em 1 Set 2016.