Guia da Semana

Pesado e com asas bem reduzidas, o besouro desafia as leis da física e não deveria voar, mas voa. Dessa mesma forma, um menino resolveu quebrar o preconceito e opressão, adotou o nome do inseto e se transformou em um herói em plena década de XX. Resgatando as raízes africanas no Brasil, o diretor João Daniel Tikhomiroff viaja no mundo onírico e de fantasia, dando voz aos deuses do candomblé e a capoeira - reconhecida em 2008 Patrimônio Cultural do país - para montar o filme Besouro.

A montagem conta com a coreografia de Huem Chiu Ku - de produções como Matrix (1999), O Tigre e o Dragão (2000), Kill Bill (2003) - e com um elenco de não atores e desconhecidos do grande público. Assim, o longa aposta na verossimilhança para narrar a história do lendário Manoel Henrique Porteira, que viveu até 1924 e enfrentou jagunços e coronéis do Recôncavo baiano para acabar com a exploração e a escravidão velada sobre o negro, ainda presente no Brasil pós-abolicionista.

Com a estreia prevista para 30 de outubro, o trailer do longa é sucesso na internet e já foi assistindo por mais de meio milhão de pessoas. Confira o bate-papo do Guia da Semana com o publicitário de mais de 40 Leões de Ouro - o grande prêmio da publicidade mundial - que abandonou a profissão e resolveu se arriscar dirigindo películas nas grandes telas.

Guia da Semana: Como foi construir o filme relatando o pós-abolicionismo e mostrando a capoeira como uma forma de resistência aos problemas sociais da época?
João Tikhomiroff::
Através de pesquisas e fragmentos históricos, soube que essa luta existia de fato, principalmente na Bahia e no interior do Brasil, com grandes fazendeiros e coronéis usando o trabalho escravo em suas terras. A capoeira e tudo aquilo que estão no filme aconteceram de verdade, a proibição e tudo mais. A primeira sessão pública foi realizada com a presença de Getúlio Vargas (1953), ainda assim sob vigilância de homens armados. Virou patrimônio cultural somente ano passado.

Guia da Semana: A coreografia é algo que destoa no seu filme, já que você chamou o premiado Huem Chiu Ku. Gostaria que você falasse sobre esse tema e porque investiu nessa área?
João
A história e o personagem pediam isso, porque ele transitava no mundo sobrenatural, sua relação com os Orixás e o candomblé - alguns diziam que o Besouro até voava. Depois queria fazer um filme de ação, não de efeitos especiais, por isso trabalho com efeitos só em quatro cenas e o público nem imagina. O resto é tudo de verdade, eles lutam capoeira mesmo, por isso escolhi capoeiristas (Aílton Carmo e Anderson de Jesus, respectivamente Besouro e Quero-Quero) a atores e dublês. Precisei trazer um coreógrafo de ação para isso acontecer, com a beleza e grandiosidade que eu queria.



Guia da Semana: Quem foi o Besouro Cordão de Ouro?
João:
O Besouro foi uma espécie de líder que se revoltou contra a postura e domínio que existia no Recôncavo Baiano. Desafiou os soldados e coronéis com o seu grande domínio sobre a capoeira, ele que era realmente considerado incrível. Aí começaram as lendas de que ele voava, tinha o corpo fechado e as armas não o atingiam, somando a isso as lendas que se diziam do besouro. Construí a trajetória desse personagem já mais ficcional para poder apresentar essa beleza cinematográfica.

Guia da Semana: Quais as dificuldades que sentiu para fazer essa produção?
João:
Diziam pra mim. "Você vai fazer filme com preto, ainda como ator principal? Você tá louco, não vai dar público!" Então não só usei como ator principal, mas 90% do elenco é negro. Sou um cara completamente sem preconceito e acho ridículo alguém ter no século XXI qualquer nível disso. O outro era que, inicialmente, o filme não seria lançado no Sul, porque me falaram que o preconceito lá era fortíssimo e não aceitariam. Tive que conversar com os representantes da RBS, apresentei o trailer e expliquei que o longa não passaria na região. Eles gostaram tanto que me encorajaram a investir lá. Por isso aumentamos para 160 o número de cópias, para lançar também no Sul.

Guia da Semana: O que o filme busca trazer ao público?
João:
Ele pretende mostrar o que passou nessa época, fazer uma grande história cinematográfica sobre isso, viajar nessa magia e resgatar o respeito a cultura negra, que é tão boa quando a branca ou amarela. Em uma das pré-estreias, ouvi de um casal de judeus que o filme era sensacional e que muito dos ensinamentos do mestre era o mesmo que o seu pai passava para ele, só que judeu. Estou adorando ter feito esse filme que tem uma base na Bahia tão sólida e na raça negra que acho linda e adoro.

Guia da Semana: Teve algum fato inusitado durante o set de filmagens?
João:
O que teve de coisas acontecendo no filme você não acredita. Só podia ser coisa de orixás! A história do inseto usado nas filmagens foi uma delas. O besouro pousou no figurino e a figurinista veio gritanto. "É um sinal!". Trouxe o inseto desde tamanho (mostra com as mãos o tamanho de uma manga) preto e morto. O detalhe é que estava a uma semana pedindo a produção para me trazer os besouros de verdade e achava todos muito ruins. O filme acabou sendo moldado em cima dele, que foi embalsamado, enviado para fazer as fotos digitais e compor o 3D igual, só que de um tamanho mais reduzido. Se eu botasse do tamanho real, ninguém acreditaria. Nesse caso a realidade era mais falsa que a fantasia, como o 11 de setembro e aqueles aviões se chocando no prédio.



Guia da Semana: Qual o orçamento total? Não passou pela sua cabeça que seria arriscado fazer um filme com tantos efeitos especiais para um filme de época?
João:
O orçamento foi de R$ 12 milhões. De jeito nenhum! Primeiro porque os maiores exemplos de filme de sucesso foram desse gênero, como o próprio Cidade de Deus, O Tigre e o Dragão e muitos outros. Odeio clichês, dogmas ou regras pré-estabelecidas. Se a fórmula do sucesso existisse, Hollywood teria um "puta" sucesso quando ela quebrou, exatamente porque só fazia essas fórmulas e não arriscava em nada. O próprio Daniel Filho, que fez Muito Gelo e Dois Dedos D'água após Se Eu Fosse Você, não foi bem. Isso que é o mágico no cinema, ele não tem fórmula, ou o público se encanta, ou não. Ninguém consegue decretar um sucesso ou fracasso de um filme antes de ir para o público.

Guia da Semana: Esse é o seu primeiro trabalho como diretor de um longa. O que te segurou até esse tempo?
João:
Era muito mais de ter uma segurança. Talvez o Fernando Meirelles também tivesse passado por isso, ele demorou muito para fazer o primeiro longa. Ele sempre teve a produtora dele, a O2 e, apesar de ter muitos diretores, sentia que se saísse teria problemas. Eu tinha que esperar o momento que pudesse ter outros diretores de filmes que pudessem fazer publicidade e ganhassem a confiança desse mercado, para me afastar. Só que fui um pouco mais radical, me afastei totalmente da publicidade e não vou voltar a fazer comerciais. Isso foi uma decisão que tomei para minha vida e a para a própria Mixer (sua produtora). Eu quero ter liberdade para fazer dramaturgia, seja um filme ou uma série. Os meus amigos cineastas me cobravam isso a toda hora. Há dois anos me encontrei com Arnaldo Jabor e ele virou pra mim e falou: "Vou perguntar pela última vez: 'quando você vai fazer o seu longa'?", respondi que já estava fazendo. Depois, ele comentou comigo que tinha até ficado animado de retomar um projeto para o cinema novamente.

Guia da Semana: O Brasil não tem tradição em filmes de ação. Por que resolveu investir nisso?
João:
O público brasileiro está querendo ter outras opções de gênero no nosso cinema, aliás não sou eu que está dizendo, basta entrar na internet para ver que o filme teve meio milhão de acesso no You Tube. Além disso, os comentários me deixaram animado, agradecendo a inovação e o gênero. Esse tipo de resposta do público é muito estimulante porque mostra que tenho certa razão, mas isso nós só vamos saber de fato depois de 30 de outubro, quando entrar em cartaz.

Fotos: divulgação/ Queila Susã

Atualizado em 10 Abr 2012.