Guia da Semana

O cinema não se cansa de ser metalinguístico. Atores, diretores e escritores figuram nas telas quase tão frequentemente quanto amantes desiludidos e agentes secretos. Mas falar de si mesmo não é, necessariamente, mais fácil do que julgar o outro, e é sobre essa autocrítica reveladora que trata o novo filme de Alejandro González Iñarritu, “Birdman (ou A Inesperada Virtude da Ignorância)”.

O filme, classificado como “comédia” por alguns, é mais irônico e melancólico do que propriamente engraçado. É um humor bastante pontiagudo que aflora da tela, ocupada por atores que se desprezam uns aos outros e críticos que julgam antes de conhecer.

Michael Keaton, recém-premiado no Globo de Ouro, interpreta Riggan Thompson, um ator de cinema que ficou famoso nos anos 90 pelo papel de um super-herói chamado Birdman. Depois de três sucessos, ele recusou a quarta sequência, mas nenhum esforço foi suficiente para desvincular sua imagem do pipocão. Vinte anos depois, falido e divorciado, ele decide dirigir, escrever e atuar numa peça “cabeça” para a Broadway.

A peça em questão é “What we talk about when we talk about love”, uma obra real de Raymond Carvers que fala sobre a necessidade de ser amado para se sentir vivo – situação análoga à do protagonista, que arrisca tudo para provar que ainda é relevante.

Iñarritu (que também assina o roteiro) aproveita o fato de Carvers ter sido um autor minimalista e inclui uma cena em que o personagem de Edward Norton provoca Riggan a reduzir suas falas ao mínimo e essencial. Assistir a isso ajuda a compreender melhor o trabalho do ator e a refletir sobre a criação como algo colaborativo, e não de uma única mente brilhante.

Keaton, que interpretou seu último Batman no mesmo ano em que Riggan viveu seu último Birdman, é a inspiração óbvia por trás do protagonista, mas seria ingenuidade crer que isso simplificaria seu trabalho. O ator encara os ambiciosos planos-sequência de Iñarritu com a segurança de um veterano e dá a este novo homem-pássaro a força para erguer-se orgulhosamente sobre os arranha-céus de Nova York, abraçando a surrealidade de sua vida encenada.

Do outro lado, Edward Norton equilibra a balança oferecendo um antagonista igualmente conflituoso. Ele é Mike, um ator em ascensão que defende uma atuação hiper-realista porque, para ele, o palco é o único lugar onde é possível ser verdadeiro. Eventualmente, essa linha acaba sendo adotada por Riggan em sua melhor performance, encerrando simbolicamente a disputa de egos entre os dois.

O embate entre Riggan e Mike representa a rixa que existe entre cinema e teatro e entre blockbusters e filmes independentes. “Você não é um ator, é uma celebridade”, condena uma jornalista, numa frase que ressoa por todo o filme e toca em feridas mal resolvidas de público, críticos e artistas.

“Você não é importante”, reforça Sam (Emma Stone), a filha do protagonista, numa cena que faz engasgar tanto a Keaton quanto ao espectador. Com sua carência incurável, ela simboliza uma nova geração virtualizada, para quem a importância é medida em cliques – e é tão passageira quanto um tuíte.

Além de Stone, Naomi Watts e Zach Galifianakis (a quem o estereótipo de “ator de filmes populares sem prestígio” também cabe bem) completam o elenco principal, formando um time tão forte quanto exige o roteiro, cheio de diálogos brilhantes que serão repetidos à exaustão.

A trilha sonora, formada quase exclusivamente por solos de bateria (e injustamente excluída dos Oscars por isso), dá uma sensação de improviso ritmado às passadas dos atores, que estão sempre em movimento, entrando e saindo de cena como numa peça teatral. Soma-se a isso o fato de o filme ter a aparência de um take único, conquistado por uma série de plano-sequências longos e transições sutis, com poucas exceções.

“Birdman”, estranho na medida certa, cumpre a promessa de refletir sobre o cinema e o teatro e tudo ao redor, olhando para dentro de si e nos obrigando a fazer o mesmo. Até a última cena, e especialmente nela, o filme se prova como mais do que um forte candidato à estatueta principal do Oscar, mas como uma obra de arte. Sensível e arrebatadora.

Por Juliana Varella

Atualizado em 3 Fev 2015.