Guia da Semana

Foto: Divulgação


Com uma câmera na mão, rumo à tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Bolívia, o cineasta Eryk Rocha busca uma simbiose entre a política e a poesia, em um documentário totalmente autoral e repleto de belas imagens. É assim que foi construído Pachamama, novo longa de Eryk Rocha, filho de um ícone do cinema brasileiro, Glauber Rocha. Em uma viagem de um mês a bordo de dois jipes, o cineasta desnuda a realidade de povos historicamente excluídos e o processo político dessas nações.

O título remete à fertilidade da terra, já que Pachamama é mãe-terra para os indígenas. Assim, como em um diário de viagem, Rocha leva à tela um percurso determinado pela procura e que revela um continente em ebulição, de onde surgem novos paradigmas políticos. O documentário pode ser visto como o desfecho de uma trilogia (Rocha Que Voa e Intervalo Clandestino), em que se privilegia uma coletividade anônima. Na entrevista a seguir, ele fala sobre a sua obra, sua ancestralidade e reflete sobre o significado do fazer cinema no Brasil hoje.

Guia da Semana: De onde surgiu a ideia de fazer Pachamama? O que te motivou a fazer esse documentário?
Eryk Rocha: Eu tenho uma relação com a América Latina muito forte, porque eu morei seis anos em vários países. Também tenho uma ligação ancestral, pois meu avô era colombiano, além de sempre ter o desejo de fazer um filme de viagem, sair pelo continente filmando, em lugares que eu nunca fui. Então eu fiz Rocha Que Voa, meu primeiro longa, que foi filmado em Cuba, com meu pai falando em "portunhol". E tudo isso se sacramentou com um convite que um amigo fez para mim. Ele é cientista político e me chamou para filmar a viagem e fizemos essa jornada de um mês, em janeiro de 2007.

Guia da Semana: E foi a primeira vez que você assumiu a câmera. Como foi essa experiência? Qual é a diferença do olhar?
Rocha: Integralmente sim. Em outros filmes eu tinha feito pequenas coisas. Por um lado foi algo fascinante, e por outro foi uma experiência que traz muitas dúvidas e muita solidão, pois não há um interlocutor naquele momento de criação. Não tem com quem compartilhar o que está sendo feito. Eu como diretor questiono o tempo todo com o fotógrafo e crio com ele. Nesta produção sou eu filmando e sendo arrastado por aquelas realidades. Foi muito prazeroso, porque eu adoro filmar. Por outro lado, tem essa coisa da dúvida, de fazer um filme sem interlocução de alguém de cinema.

Guia da Semana: E quem te acompanhou?
Rocha: Eram três historiadores, um cientista político e três engenheiros mecânicos, que cuidavam dos jipes. Eu não tinha um parceiro de cinema.

Guia da Semana: O que ditou o roteiro do filme?
Rocha: O trajeto, que foi previamente desenhado. Só isso.

Guia da Semana: E você planejou a viagem com muita antecedência?
Rocha: Eu soube que ia viajar em setembro e viajei em janeiro. Mas não teve planejamento.

Guia da Semana: Foi bem experimental então?
Rocha: Experencial eu diria, de experiência. A vida é inseparável do filme. A viagem é inseparável do filme. Nesse sentido foi muito diferente dos anteriores, que tinham uma pesquisa e uma equipe de cinema. Eu não fiz uma pesquisa prévia. É um filme de descoberta. O próprio processo é o filme, foi como um diário de viagem.

Guia da Semana: Quais dificuldades você encontra em fazer esse tipo cinema no Brasil hoje?
Rocha: Gostaria que os meus filmes e os de muitas pessoas que eu conheço fossem muito mais vistos, discutidos, ouvidos. Essa é uma grande questão que a gente vive no Brasil e no mundo. A falta de espaço na televisão também é uma dificuldade. É uma parceria que a gente ainda não conseguiu realizar, infelizmente. E o resto é a luta diária para realizar um filme. Eu acompanho todas as fases da produção, do roteiro até a realização. São filmes muitos artesanais, nos quais estou muito envolvido. Fazer esse tipo de cinema mais autoral no Brasil exige que isso seja o centro da sua vida. Nesses filmes é possível exprimir o que há de mais essencial dentro da pessoa.

Foto: Divulgação


Guia da Semana: Quais diferenças você percebeu no retorno da sua viagem em relação aos povos historicamente excluídos do Peru, da Bolívia e do Brasil?
Rocha: O deslocamento é uma forma de autoconhecimento, de conseguir ver de uma forma mais clara o seu próprio país e se ver como pessoa. Só quando você vê o que é diferente que você reconhece a sua identidade. Foi uma grande inspiração para mim essa aproximação da realidade desses países e ver o quanto essa ancestralidade está viva no presente deles. Uma cultura ancestral que é matéria-prima para eles repensarem a própria política hoje. Esse movimento é novo, muito particular. E o filme lança algumas impressões sobre esse processo. Isso me afeta enquanto brasileiro, pois me faz pensar sobre nós, qual é o nosso lugar no mundo, e que mediocridade é a nossa política. O quanto nós ainda estamos anestesiados em relação à desigualdade do nosso país, apesar de todos os avanços que o Brasil teve com o governo Lula.

Guia da Semana: Por que até agora você preferiu fazer documentários desprendidos de um cunho mais jornalístico? O que te chama atenção nessa linguagem?
Rocha: O cineasta Rogério Sganzerla me disse durante um debate que o documentário é arte e o jornalismo não. O jornalismo vem de uma verdade. No cinema documentário que eu faço não estou preocupado com a verdade e nem em concluir nada. A verdade vai ser resultado do meu encontro com o outro. A linguagem do documentário nasce da precariedade da relação com o outro. E a relação com mundo é muito precária. O jornalismo é uma outra coisa. A vertente de documentário jornalístico não me interessa, pois a única objetividade que existe na arte é que só há subjetividade. Esses trabalhos que buscam objetividade, imparcialidade e clareza são inviáveis para mim. Os meus filmes revelam a minha fragilidade e o meu desejo de tentar entender o mundo que eu vivo. Eu escolhi o documentário para falar dessas questões. Mas agora estou fazendo uma ficção. Não vejo uma hierarquia. Quando eu estou fazendo documentário penso muito na ficção. E quando fui filmar minha ficção pensava muito no documentário. Está tudo entrelaçado.

Guia da Semana: Um crítico disse que Pachamama é o seu atestado da maturidade estética. O que o filme realmente significa para a sua carreira?
Rocha: Ele é uma tentativa de uma simbiose entre a política e a poesia. É o encontro entre o humano e o místico e sagrado. Ele desenvolve uma pesquisa dos filmes anteriores nessa direção. É um filme que me dá mais vontade de continuar fazendo cinema, de não ter medo de mostrar as dúvidas, a solidão, os erros, a busca. Estou à procura de mim mesmo e do continente onde eu moro.

Guia da Semana: E como é ser filho de Glauber Rocha? Ter herdado esse legado facilitou sua carreira?
Rocha: Eu fiz o filme sem nenhum patrocínio. Eu filmei a minha viagem, montei, virou um filme, passou em muitos festivais e ganhou um prêmio. Essa herança é muito saudável para mim, muito estimulante e inspiradora. Não só do meu pai, mas da minha mãe também. É um grande estimulo para eu acreditar nas coisas que me apaixono. Ser filho dele é coragem. É continuar fazendo o que eu acredito, sem medo. Mas, sendo filho dele ou não, é preciso se arriscar. Sem risco não há invenção. Qualquer filme é um abismo. Esse processo é cheio de dificuldades, de luta. Eu sou um privilegiado não tanto por ser filho do Glauber, mas por ser da classe média brasileira, ter educação e condição de fazer um filme. O Glauber está no sentido espiritual, na iluminação. Mas na prática, é pegar a câmera, muitas vezes sem dinheiro, e acreditar. Fazer cinema é dizer algo que não pode deixar de ser dito.

Atualizado em 6 Set 2011.