Quem espera chegar ao cinema para assistir ao documentário Elza e se derreter em lágrimas, pode esquecer. Diferente da trajetória sofrida da mulher nascida no morro que se casou e foi mãe aos 12 anos, ficou viúva aos 18, sofreu com a morte de dois filhos e enfrentou ostracismo e racismo de uma sociedade ao se envolver com o jogador de futebol Garrincha, Elza não fala de tristeza. Assim como a cantora, o documentário veio para cantar.
Dirigido pela dupla Izabel Jaguaribe (que já havia sido responsável pelo documentário Paulinho da Viola - Meu Tempo É Hoje) e Ernesto Baldan, o filme pode ser considerado não uma biografia, mas, sim, uma espécie de musicografia - com perdão do neologismo. Nele, a cantora carioca de 73 anos desfila pela tela ao mesmo tempo que é elogiada por diversas personalidades da música brasileira, que contam sua história a partir de lembranças e famosos "causos".
De nomes como o cantor e compositor Moreira da Silva, o escritor e ator Haroldo Costa, passando por declarações do antropólogo Hermano Viana (irmão de Herbert Viana, líder do Paralamas do Sucesso), até a presença dos músicos José Miguel Wisnik e João de Aquino, o filme traz astros da música brasileira como Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Mart`nália, rasgando seda sobre aquela que eles consideram uma das maiores vozes do país.
E não é pra menos: afinal, escolhida como a Voz do Milênio pela BBC de Londres, Elza Soares tornou-se uma cantora de diversidade sonora ilimitada. Do samba ao jazz, do samba-canção ao choro, e até fortes passadas pela música romântica, para ela o improviso é a grande alma que lhe dá voz. Ou a voz que lhe dá alma. O espectador escolhe.
Com seu primeiro grande sucesso, Se Acaso Você Chegasse, Elza desceu do morro, passou pelo preconceito e deu sua inigualável rouquidão às multidões, aliada ao jeito malandro, uma espécie de ginga da maloca, características que não perdeu ao longo do tempo. E, sem intenção alguma de abandonar os palcos, encarna com força e talento a mulher negra brasileira. Como cita Bethânia, "Elza representa a aristocracia do morro".
A propósito, Bethânia é uma das vozes que firmam parceria em Elza. O filme, mais do que um retrato, é uma espécie de roda de samba, uma mesa de boteco, onde amigos se reúnem em louvor a um dos maiores ícones da música brasileira. De canções como Lama, de Arrigo Barnabé, Flor e Espinho, de Benito di Paula, Rosa Morena, de Dorival Caymmi, Sei Lá Mangueira, de Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho, É Luxo Só, de Ary Barroso e Luiz Peixoto, e até mesmo a inesquecível Samba da Bênção, de Vinicius de Moraes, é a voz de Elza que ecoa em uma tela preenchida por sua eletrizante presença.
De parcerias emocionantes (com Caetano ao cantar e chorar com Dor de Cotovelo), passando pela catártica e longa união com Bethânia, até a deliciosa voz de veludo de Paulinho da Viola com a fúria de Elza, acompanhamos ainda um mix de sucessos de Jorge Ben Jor em uma parceria marcante. Ousada e bem-humorada, Elza Soares oferece momentos memoráveis, quando conta que decidiu ser prostituta após uma ingenuidade juvenil e de onde surgiu seu gemido rouco tão marcantes em suas canções.
Nesta dura descriminalização do samba com o longo passar dos anos, Elza fez parte desta evolução do ritmo, do movimento, do improviso, em uma reinvenção quase inconsciente em que, para ela, "até o sério deve ser louco". Ousada, pobre, negra, guerreira, cantora, mãe, mulher, mito. Enfim, apenas Elza, como diz o título do documentário.
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O Mágico
Amor e outras drogas
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Atualizado em 6 Set 2011.