Guia da Semana

Foto: Divulgação


A metalinguagem entre a animação francesa O Mágico (2010) e o longa Meu Tio (1958), também da França, é espantosa. No filme, lançado há 53 anos, escrito, dirigido e interpretado pelo francês Jacques Tati (1907 - 1982), um senhor de meia-idade vai passar uns dias na casa da irmã e do cunhado. Lá, torna-se próximo do sobrinho e tem de lidar com as mais curiosas situações, em um ambiente repleto das maiores geringonças tecnológicas. É o antigo contrastando com o novo, quase como ver Fred Flinstone visitando os Jetsons.

Pois eis que, quase 29 anos depois da morte de Tati, somos levados a uma animação que conta com história - escrita em 1956 - pelo ator francês. Dirigido e com roteiro adaptado por Sylvain Chomet (do ótimo As Bicicletas de Belleville), O Mágico consegue superar o outro longa de animação de Chomet.

Bem cuidado ao extremo e com um roteiro primoroso, o filme conta a história de um mágico de meia-idade dos anos 50 que, com a ascensão do rock´n roll e da tecnologia (jukebox e televisão, por exemplo), sofre com o ostracismo de suas apresentações. Afinal, praticamente ninguém mais quer assistir às apresentações regadas a coelhos tirados da cartola e objetos que aparecem e desaparecem por debaixo de pequenos lenços nas ágeis mãos dos artistas.


Assim, o personagem passa pelos maiores perrengues para fugir do esquecimento. Durante uma viagem a um pequeno bar na Escócia para uma apresentação, ele conhece a jovem Alice, uma garçonete humilde do local. Encantada com os números do mágico, os dois seguirão juntos em uma jornada que irá mudar suas vidas para sempre.


A animação tradicional em 2D de O Mágico é espetacular, no sentido literal da palavra. Com uma graciosidade e uma riqueza de detalhes impecáveis, o filme preza pela iluminação irretocável, na qual seguimos com os personagens em uma busca para reacender o amor pela arte, esvaído diante da viciante tecnologia.

E o contraponto da beleza e poesia de O Mágico é, justamente, essa melancolia que percorre o filme. Com um humor quase tênue - que pode levar o público a sorrir sem graça, com um sorriso de canto - e por ora mordaz, o longa é repleto de gags visuais e muitas informações a cada frame. Sem diálogos, os personagens se restringem a murmurarem algumas frases, dando ao filme um clima ainda mais denso, com situações extremamente bem calculadas e expressões gestuais e faciais que dizem muito mais que qualquer linha falada.


Com um exagero em seus curiosíssimos personagens coadjuvantes, vamos acompanhando a nostalgia da infância perdida, como o ventriloquista solitário, o palhaço alcoólatra e os acrobatas sem circo que se adaptam aos novos tempos. Isso faz com que O Mágico não seja, propriamente, um filme para crianças, mas sim para aqueles que alcançaram a maturidade e guardam a sensação de uma inocência preservada em algum lugar do tempo.

Nesse exagero proposital, a crítica é implacável, avacalhando uma sociedade europeia burra, mesquinha e rica em seu pós-Segunda Guerra, onde o glamour dos cabarés parece ter vendado grande parte da população diante de sua realidade. Porém, na contramão desta epidemia social, temos a doce Alice, uma jovem inocente que vê a mágica não apenas como arte, mas como uma resolução de todos os problemas.

Tati sabia do que estava falando ao escrever o roteiro, pois viu que a verdadeira arte poderia entrar em decadência e, infelizmente, estava certo. Tratando de temas como caridade, amizade e solidão com profunda nostalgia e encanto, O Mágico - dedicado a Sophie Tatischeff, cineasta e filha de Tati, morta em 2011 - se firma como uma das mais belas animações já feitas. No ano em que Toy Story 3 tem ganhado todos os holofotes nas premiações (ambos estão indicados ao Oscar 2011 de Melhor Animação), o filme mostra uma vida que segue, com epílogo capaz de dar um vazio àqueles mais emotivos. Definitivamente, uma obra que usa da poesia para falar da tristeza e vice-versa.

Leia as colunas anteriores de Leonardo Freitas:

Amor e outras drogas

Desenrola

O garoto de Liverpool


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Atualizado em 6 Set 2011.