Guia da Semana

Certos filmes têm o poder de extrapolar a tela de cinema. Eles dialogam com seu tempo e com tempos passados, criam novas significações sobre velhos temas e lançam debates que acabam envolvendo até quem não assistiu à obra. “O Nascimento de Uma Nação” é assim: um filme cujo sentido depende completamente de seu contexto.

O longa foi escrito, dirigido, produzido e protagonizado por Nate Parker e exibido pela primeira ver no festival de Sundance. Depois de chamar a atenção por repetir o título de um dos maiores clássicos do cinema americano, o filme faturou o maior contrato de distribuição já fechado no evento, com a Fox Film, e foi imediatamente catapultado para a corrida pelo Oscar 2017.

Alguns meses depois, entretanto, a campanha sofreu um baque após a revelação de que Parker foi réu num caso de estupro em 1999, do qual foi inocentado, mas cuja vítima cometeu suicídio em 2012. Desde então, o filme tem sido visto com outros olhos pela crítica e pelo público, que se divide entre considerar ou não o caso na análise da obra. Outros diretores acusados de crimes semelhantes foram Roman Polanski e Woody Allen.

Dito isso, comecemos pelo título: “O Nascimento de Uma Nação”, épico de 1915 de D.W. Griffith, foi um marco do cinema por inaugurar ou aperfeiçoar diversas técnicas de edição. O longa, porém, contava a história de duas famílias que lutavam em lados opostos da Guerra Civil americana e ficou conhecido, entre outras coisas, por fazer apologia ao racismo ao exaltar a chegada do grupo extremista Ku Klux Klan.

O longa de Parker é o oposto disso: baseado numa história real, ele conta a história de Nat Turner, um escravo letrado que liderou uma rebelião contra os fazendeiros brancos, mais ou menos na mesma época em que se passava o clássico de Griffith. Vale notar que o filme chega aos cinemas americanos num momento em que a violência policial contra a população negra ocupa o centro das atenções no país, e artistas de âmbito mundial vêm se posicionando como embaixadores de uma nova onda de orgulho negro.

Outro tema forte no drama histórico é o papel da religião católica na opressão racial. Autodidata, Turner foi uma criança-prodígio que chamou a atenção de sua senhoria. A moça branca o trouxe para dentro da Casa Grande e o ensinou a ler – mas proibiu a ele absolutamente todos os livros, exceto a Bíblia. Dessa forma, o garoto não apenas desenvolveria uma devoção conveniente para os senhores, como também se tornaria um pastor negro, capaz de espalhar a mensagem de submissão às outras fazendas da região.

Essa formação do personagem, de sua infância cheia de esperanças até a tomada de consciência que o levará à rebelião, ocupa a maior e melhor parte do filme. Filmada com precisão e sob uma fotografia elegante assinada por Elliot Davis, essa trajetória prende o espectador na poltrona e oferece reflexões muito maiores do que a história que se vê em tela. Que bom seria se Parker conseguisse manter o ritmo até o fim.

Entre a decisão de se rebelar e o esperado final trágico, alguma coisa desanda – tanto na ficção quanto na realidade. O filme perde força nos minutos finais e acaba optando por clichês que enfraquecem seu protagonista e sua mensagem. E então, quando a poderosa cena de encerramento finalmente se impõe, a sensação é de que, apesar de comovidos pelo filme, não podemos deixar de compará-lo a outras obras recentes (e mais bem acabadas) sobre a negritude americana, como “12 Anos de Escravidão”, “Selma”, “Straight Outta Compton” ou a série “The Get Down”.

O Nascimento de Uma Nação” é, de fato, um filme forte e importante sobre o passado escravista americano, que incita questionamentos sobre a religião e suas interpretações, sobre vingança, preconceito e papéis sociais. Mas, apesar da qualidade técnica e das belas atuações, ainda não é o filme que brigará de frente com um clássico como o de Griffith, nem é um filme que mudará a forma como se enxerga aquele momento na História. O fato de este ser o longa de estreia de Parker na direção, entretanto, deixa claro que este é um nome que voltaremos a ouvir, muito em breve. Ficaremos de olho.

O filme estreia nos cinemas no dia 10 de novembro e está sendo exibido na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Por Juliana Varella

Atualizado em 7 Nov 2016.