Guia da Semana

Poucos países podem se orgulhar de competir com os Estados Unidos quando o assunto é cinema. Atravessando os mares para longe dos super-heróis, do sonho americano e dos dramas “universais”, vive o cinema do indivíduo, das quatro paredes, da sensualidade e da loucura... O cinema francês.

Digo “competir” dentro dos limites possíveis, é claro. Não estamos falando de quantidade (são cerca de 470 filmes lançados por ano nos EUA, o dobro da França e quatro vezes a produção brasileira), mas sim de prestígio: com "O Artista", a França tornou-se o primeiro país não-anglófono a vencer um Oscar de Melhor Filme, sem co-produção norte-americana.

Berço do cinema

A história desse cinema vem de longe: foi na França que os irmãos Auguste e Louis Lumière inventaram o cinematógrafo e aterrorizaram sua plateia com “A Chegada do Trem à Estação”, antes mesmo que o século XX começasse. Pouco depois viria Georges Méliès, criador de “Viagem à Lua” (1902) e avô da ficção científica e do cinema fantástico. Também foi um francês, Émile Cohl, que levou o crédito pelo primeiro filme animado da história, “Fantasmagoria” (1908).

É melancolicamente curioso que alguns desses gêneros tenham se tornado célebres graças ao cinema norte-americano, que cresceu após as guerras e invadiu o mercado internacional. A resistência veio nos anos 60, com o levante dos críticos franceses para o “campo de batalha”, munidos de câmeras e de um novo ideal de cinema: o da elegância simples, do roteiro alinear e da câmera expressiva da Nouvelle Vague.

Hoje, a sobrevivência do cinema francês se deve muito ao apoio estatal – tão eficiente que, nos últimos anos, conseguiu garantir que 40% das bilheterias fossem nacionais. (Para se ter uma ideia, no Brasil os títulos estrangeiros somam mais de 80% da audiência.)

Ali, o segredo são os filmes que equilibram o teor local com o internacional, exploram todo o tipo de gênero sem abrir mão do roteiro e da autoria, e que fazem muito sucesso – como foi “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” em 2001 e “Intocáveis” em 2012.

No Brasil

Você provavelmente já cruzou com diretores franceses, mesmo que não saiba: se não com os intelectualíssimos Alain Resnais (“A Regra do jogo”), Jean-Luc Godard (“Acossado”) e François Truffaut (“Os Incompreendidos”), então com o estiloso Luc Besson (“O Quinto Elemento”), ou com o sonhador Michel Gondry (“Espuma dos Dias”). Mas existe muito mais de onde esses vieram, um universo quase infinito de autores e – por que não? – de cineastas comerciais que sustentam o dia-a-dia das bilheterias locais.

Quanto aos atores, Brigitte Bardot, Catherine Deneuve e Gérard Depardieu são velhos conhecidos deste lado do mar. Também cruzaram fronteiras Juliette Binoche, Julie Delpy e, especialmente hoje, a bela Eva Green – revelada no franco-italiano “Os Sonhadores” e atual estrela de ações hollywoodianas como “300 - A Ascensão do Império”. A mistura é parte do cinema francês, que também tem aberto portas a cineastas estrangeiros (como Asghar Farhadi, com "O Passado").

Por aqui, o cinema europeu sempre foi associado às salas de rua e aos cineclubes, com cópias vistas e veneradas por quem queria fugir, justamente, de Hollywood. Esse conceito vem mudando e, hoje, alguns cinemas de shoppings já abrem suas salas a filmes de menor orçamento e menor pretensão de bilheteria, revelando ao público uma variedade maior de temas e olhares.

Quanto às mostras, estas não param de crescer: há edições locais, nacionais, digitais e como mais se imaginar, como o Festival Varilux, Festival da Francofonia, My French Film Festival.

Simplicidade e magia

A verdade é que, para se apaixonar por esse cinema, basta uma única picada. Um filme certo, na hora certa. Será algo no olhar daqueles atores, que parecem sentir a vida mais intensamente; ou será o modo como falam, como filmam, como se movem.

Há uma sinceridade no cinema francês que nos faz ver o mundo com olhos mais limpos, como se o observasse pela primeira vez (como nos dramas de François Ozon). Mas há também a possibilidade do impossível, do sonho que contamina a realidade, do delírio criativo - inocente ou insolente (como nos filmes-conceito de Leos Carax).

No final, é como se a simplicidade dos Lumière tivesse encontrado a magia de Méliès, e vivesse para sempre no coração dos amantes do cinema francês.

Por Juliana Varella

Atualizado em 28 Jan 2016.