Revi, no último fim de semana, um filme que gosto muito e que só melhorou nesta revisão. Trata-se de Munique, de Steven Spielberg. Já falei por alto desse filme em outra coluna aqui, quando a citei como parte de uma trilogia Spielberguiana sobre os atentados de 11 de Setembro e seus efeitos posteriores. Agora aproveito esta revisita ao filme para desdobrá-lo com mais calma.
Ao final de Munique o que mais me chamou a atenção foi algo que denomino aqui como a "travessia do herói". Não sou conhecedor das tradições e lendas da cultura judaica, mas talvez exista em alguma delas um herói no sentido clássico, que atravessa seu destino julgando transformar o mundo, quando na verdade o único que se transforma é ele mesmo enquanto todo o resto permanece igual. Essa é a essência de Munique e da figura do "herói": uma alegoria que serve como ponto de irradiação para os desdobramentos de um acontecimento real e as muitas verdades que podem existir por trás de políticas de contra-terrorismo e espionagem.
Baseado em acontecimentos reais, o filme fala da reação do governo israelense após o trágico ato terrorista ocorrido nas Olimpíadas de Munique, em 1972: o sequestro e assassinato de 11 integrantes da equipe olímpica de Israel pelo grupo terrorista Setembro Negro. Uma reação que não poderia ser mais bíblica, no sentido do Velho Testamento: 11 pessoas (olho por olho) ligadas direta ou indiretamente ao grupo Setembro Negro deveriam ser assassinadas como revide aos 11 israelenses mortos no atentado.
No filme, para executar a tarefa, o Mossad (Serviço Secreto de Israel) recruta Avner (Eric Bana, muito competente no papel) e mais três membros com "especialidades" diversas. Todos os membros são oficialmente "desligados" do Mossad, para que o governo possa negar qualquer envolvimento no caso de serem pegos. Todos encaram suas tarefas com orgulho e determinação, sabendo que o fazem por um motivo nobre: a vingança contra o inimigo.
Avner, em especial, que tem de abrir mão de sua família, encara sua missão como um dever maior. Filho de um reconhecido herói nacional, ele se vê diante da oportunidade única de realizar um ato patriótico, embora secreto e que nunca poderá ser revelado a ninguém. Avner acredita estar assim contribuindo de alguma forma para mudar (melhorar? limpar?) o mundo. Acredita solenemente em seu dever como israelense.
Com 164 minutos, o filme segue um tanto lento no seu primeiro terço de duração. A trama só ganha substância quando entra na história a figura de Louis (Mathieu Amalric), um informante, membro de uma organização apolítica e sem ligação com qualquer grupo, ideologia ou crença. E esta organização que vende informações sobre os nomes da lista de Avner, os nomes dos que devem morrer. Melhora ainda mais quando Avner conhece pessoalmente a figura de Papa (Michael Lonsdale), pai de Louis e chefe da organização. Por ter informação como moeda de troca, detém grande poder, embora de forma discreta.
A entrada desse personagem na trama acrescenta novas nuanças para o conflito no qual Avner está envolvido, assim como para a perspectiva de guerras e jihads pelo mundo. E isso não diz respeito somente à Palestina e Israel. É a partir daí que Avner começa a enxergar o mundo livre das amarras ideológicas de seu governo (ou de qualquer outro governo) e passa a entender do que realmente ele faz parte: um grande negócio, um grande comércio. Uma grande e lucrativa troca de mercadorias. Informações por vidas, vidas por informações; e muito dinheiro entre uma coisa e outra.
Avner percebe, através de Loius e de Papa, que o jogo em que está envolvido é menos o jogo patriótico, da ideologia ou da fé, e mais o jogo comercial, de compra e venda, de business, de lucro. Tem pouco haver com pátria, nação, identidade, vingança ou justiça. É tudo, simplesmente, jogo. E ele é só mais uma peça, no sentido literal, que serve para atender a interesses que em nada se ligam a seus ideais e àquilo pelo que ele luta, ou acreditava lutar.
Apesar de tudo, Avner preserva seu sentido de dever e segue com sua demanda. Mas logo percebe, que sendo ele parte do jogo, também pode estar sendo comercializado, já que os que compram e os que vendem nesse mercado de morte e lucro trocam de lado facilmente, dependendo apenas de quem pagar mais.
É quando ele se conscientiza de que não tem nada de herói. Percebe que tudo que fez até então de nada serviu para seus antigos ideais e que as pessoas que morreram, de qualquer um dos lados, morreram por nada. Ou melhor, morreram porque no mercado valiam um tanto mais ou um tanto menos. Percebe, por fim, que ele mesmo pode ser uma mercadoria, pois no momento em que passou a fazer parte desse mercado, se tornou também uma mercadoria, mais um nome a ser vendido.
Na concepção clássica de herói, Avner se transforma dentro do processo em que se julgava transformador. Como numa fábula negra, passa a enxergar o mundo e a si mesmo como realmente são: sem grandes significados nobres e com muitos interesses sórdidos passando por cima de ideais e crenças. Sabe que para cada um que matou outro assumiu seu lugar e que aquilo não teria fim. "Afinal, porque se cortam as unhas, se elas voltam a crescer?", pergunta-lhe certo personagem na trama.
No fim, Spielberg, que mostra ter mais maturidade do que a média de seus filmes fazem crer, coloca Avner numa posição de anti-herói ou de herói caído e o faz de modo a atingir em cheio as políticas de guerra (terrorismo, contra-terrorismo, guerrilha, contra-guerrilha, políticas internacionais, diplomacias, governos, fé, pátria e identidade). Tudo cai por terra diante dos olhos de Avner, que finalmente enxerga, depois de estar cego por toda uma vida. Um filme excelente, livre de maniqueísmo simplistas, em que não há defesa para ninguém e onde tudo leva a nada.
Leia as colunas anteriores de Rogério de Moraes:
Do seu tempo
Marcas do Passado
Encher os olhos
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Atualizado em 6 Set 2011.