Guia da Semana


Sopro da vida, este é o significado de Baraka (1992). O longa-metragem, criado por Ron Fricke e Mark Magidson, percorreu 24 países em pouco mais de um ano. Trata-se de uma seqüência documental de imagens de alta qualidade, não há elenco e nem texto. A interpretação acaba se tornando livre e varia conforme o repertório de cada indivíduo. No entanto, é comum a todos que o filme aponta a beleza da natureza e a destruição do homem.

O recomendável é assisti-lo, mas já aviso que esse é o tipo de filme que exige comprometimento do espectador. Se não acompanhar o ritmo de Baraka, você fica para trás. As cenas não possuem legenda, de forma que fica difícil definir a localização. Isso acontece de propósito, pois, segundo Fricke, o local não é o mais importante e sim o que está lá. Para isso há a trilha sonora, que conduz as cenas de maneira majestosa. Não há como verbalizar, é preciso sentir.

Os primeiros três minutos de filme são muito significativos para mim. Imagens das montanhas do Himalaia e Nagano mostram a natureza intacta, livre da intervenção humana. Parte desses minutos é dedicada a um macaco, que se aquece no rio tão tranquilamente que quase dorme. Eu sempre me pergunto se a escolha do animal também foi intencional, remetendo a dita evolução do homem. O filme segue com a representação de uma sociedade organizada, porém ainda primitiva. Aqui são retratados indícios de devoção com imagem do Templo de Swayambhunath no Nepal, os monges budistas tibetanos, o Muro das Lamentações com judeus, ritual na Turquia, Igreja cristã, entre outras.

A quebra disso vem com a primeira imagem de um centro urbano como conhecemos, com construções, avião, automóvel e trem. A natureza reaparece para estabelecer uma comparação e mostrar que está sendo substituída pela urbanização. Outra coisa que sempre penso é que a freqüência com que aparecem as paisagens, que desaparecem gradualmente, representa a velocidade do processo. Mais adiante não há sequer um quadro da natureza, que foi engolida. A seqüência volta para as construções antigas da Indonésia e Camboja como um princípio da intervenção humana. Começa então a fase das forças tribais com exemplos de ritos indígenas, africanos e indianos. Eu tenho sempre a impressão de que as imagens dos animais em bando dialogam com o homem e sua tribo.

Mas nem o tempo e nem o homem param. Aparecem imagens de guetos no Brasil, a favela do Rio de Janeiro, periferia no Equador e muitas crianças em todas elas. Seria a indagação do futuro, a próxima geração que vai tocar o mundo? Sob quais conceitos de vida isso se dá? Os prédios tomam conta, é a idéia de menos espaço para mais gente. Fábricas repletas de homens que produzem em série. O capitalismo e a exploração de baixo custo para a maximização do lucro. A fase do urbano predomina e é bem representada por imagens aceleradas do tráfego e dos transeuntes. A figura do relógio ganha destaque pela primeira vez. Em um disparo, o espectador é invadido pela sensação de pressa, claustrofobia, individualismo, tecnologia e cansaço. Um bailarino japonês dá um grito em silêncio.

Nesse ritmo de exploração do mais fraco não podia ser diferente senão chegar à condição miserável do humano. A pobreza e o lixão como sustento, criança que cuida de outra criança, pessoas que moram em locais públicos, a negligência, a exploração de menores, o tráfico sexual, a marginalização. Ou seja, a satisfação do eu à custa do outro. A cada imagem um desgosto, um horror. E tem mais: indústria bélica, terrorismo de Estado, guerra, destruição, poluição, queimada, campos de concentração, holocausto, tortura, vítimas, medo, morte.

De repente o filme resgata imagens de construções das civilizações extintas como os egípcios. Será que isso não foi um sutil modo de mostrar que nesse ritmo a civilização contemporânea está fadada à extinção? Num ritmo mais desacelerado, Baraka mostra sociedades de terceiro mundo não globalizadas que vivem nas frestas do sistema em meio ao caos. A imagem da natureza volta, em bem menor escala, mas ela ainda está lá. E se tudo isso, afinal, não quisesse dizer que ainda há onde recomeçar, o que preservar e por que mudar? Os dias continuam passando nesse mundo que pertence a um universo não desvendado.

Fotos: http://www.spiritofbaraka.com/baraka.aspx

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    Quem é a colunista: Vanessa Carvalho, ex-atriz e bailarina, adora uma boa maratona de filmes, jogos de vídeo game, uma rave animada ou um papo descomprometido em uma mesa de bar.

    O que faz: Estudante de jornalismo e repórter da equipe do Guia da Semana.

    Pecado gastronômico: Overdose de carboidratos em um restaurante fast food.

    Melhor lugar de São Paulo: Meu quarto, meu domínio.

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  • Atualizado em 6 Set 2011.