O tempo mudou de repente. A casa era abafada, quente e ela sentiu necessidade de sair logo. Enquanto caminhava em direção a casa dele, suas mãos ficavam cada vez mais úmidas, o coração batia em ritmo acelerado e o peito cada vez mais sem ar. Carros e pessoas passavam ao seu lado e tudo parecia mover-se em câmera lenta.
Como eu começo?

Ele ta diferente...
Era baixinha, difícil de ser notada, a não ser pela sua capacidade de chamar atenção ficando amiga de todo mundo que cruzasse sua frente. Suas atitudes, sensatas ou insensatas. Ela culpava o seu signo. Aquariana! Ascendente em Escorpião.
Tinha acordado cedo e foi ao salão cortar as pontas duplas (quase quatro dedos, até chorou!) Fez escova, se pintou e só por precaução colocou uma calcinha sexy.
Sei que vai me receber blasé como sempre seu mimadinho, mas depois do que eu ensaiei para te falar, você será apenas um Zé Ninguém, jogado no meio desses teus cachorros fedorentos, remoendo suas lembranças com aquela professorinha de merda e eu vou voltar pra casa, linda, perfumada e vou escolher um cara qualquer da minha agenda e vou dar pra ele, você vai ver, você vai ver!
- Oi minha linda. Quanto tempo! Cortou o cabelo?
- ...Não! Impressão sua!
- Que saudade...
- ...É, eu também!
Idiota, não me abraça assim. Me trata mal...
Subiram. Ele serviu cerveja gelada. Ela ensaiou recusar. Acabou cedendo. Mandou ela escolher um CD e ela optou pela rádio. Na parede, fotos dele e da ex-namorada, tempos diferentes, os cortes de cabelo entregavam o tempo daquela relação. Viagens internacionais, souvenirs, lembranças por toda parte.
Mal conheço a Argentina... E esse monte de almofadas no chão, coleção de DVDs, CDs por toda parte? Aqui é um matadouro não é? Desgraçado! Aposto que começa a comer essas vagabundas aqui, depois leva para o quarto, foi assim comigo...
- Diga!
- O quê?
- Sei lá... Qualquer coisa...
- Hum... Qualquer coisa... (silêncio)
- Hum... Engraçadinha, você me disse que tinha um "assuntinho" pra falar comigo... Bom, vou tomar banho, quando voltar quero saber de tudo, hein? Você se importa?
- Não, não, imagina.
Assuntinho é? Odeio diminutivos.
A sala tinha um espelho grande. Passeou as mãos pelos CDs e pensou em colocar uma música pra tomar coragem. As músicas sempre a ajudavam. Quando era novinha adorava criar trilhas sonoras pra si, gravava fitas cassetes e escrevia nas etiquetas: MÚSICAS LENTAS, HOUSE, A GATA COMEU INTERNACIONAL... Sentia o cheiro do xampu descendo o ralo do banheiro.

O telefone tocou sem parar: o da casa, o celular deixado em cima da mesa, barulhinhos diferentes pra cada chamada. Ela desejou atender o telefonema da ex, e falar "ele não quer mais você, é meu, meu!" Acabou indo em direção ao espelho grande na parede e se olhou. A cerveja subiu rápido, por um momento tudo girou, pegou o celular dele e viu nomes de várias mulheres diferentes, todas em diminutivos. Viu o seu e estava escrito: Aninha. Sentiu-se tão pequena, nada especial, como ele era pra ela. Parecia que as fotos olhavam pra ela e ficou incomodada. Foi até a cozinha, abriu a torneira e jogou água no cabelo, ia sair pelos fundos, mas voltou, escreveu um bilhete e deixou em cima da mesa.

Saiu descalça, sem escova no cabelo. Ele ligou para o seu celular, ela não atendeu. Deve ter lido o bilhete, pensou. Foi até a padaria da esquina e comprou um picolé. Passou na frente de um grupo de homens e tirou com todo o prazer a calcinha da bunda, sentiu-se vulgar e também desejada.
Preciso pensar numa música.
Fotos: Getty Images

O que faz: Um apaixonado pela artes que largou a vida da administração para viver do teatro
Pecado gastronômico: massa, muita massa!
Melhor lugar do Brasil: Bem acompanhado, até no deserto do Saara!
Fale com ele: [email protected]
Atualizado em 6 Set 2011.