Serendipidade. Se eu tivesse que definir Dordogne em uma palavra para meus amigos, essa palavra seria serendipidade. (Não se preocupe, eu explico melhor o motivo pelo texto)
Fruto do multitalentoso estúdio Un je ne sais quoi – membro da UMANIMATION e responsável por filmes animados, ilustrações e, claro, games – Dordogne é um desses jogos que aparecem de tempos em tempos que chamamos de experiências digitais, jogos cujo objetivo não é vencer nem encontrar uma recompensa, mas vivenciar personagens e, de alguma forma, pertencer a uma história.
Em Dordogne, Mimi vai à casa de sua avó, Nora, em busca de respostas sobre sua família e para entender melhor porque não consegue se lembrar de nada antes de seu 13º aniversário. Para encontrar respostas, ela explora essa casa como num point-and-click, encontra cartas, gravações e resolve quebra-cabeças. Assim, jogadores reconstroem a história aos poucos viajando entre o presente e o verão de 1982, investigando os campos cortados pelo rio Dordonha (daí o nome do jogo), que está localizado no sudoeste da França e materializado no jogo na forma de aquarelas digitais que encantam e trazem certa nostalgia, mesmo que essa lembrança não seja nossa.
Quer descobrir se vale a pena jogar este jogo indie aquarelado chamado Dordogne? Descubra nessa review antecipada do Pizza Fria!
Serendipidade
O que é, o que é: é fresco quando está quente?
Espera, antes tenho que dizer por que serendipidade é a palavra que define Dordogne. Serendipidade é uma descoberta feliz, feita por acaso, quase sempre quando se buscava outra coisa; é uma grata surpresa inesperada.
Uma das falas repetidas ao longo do jogo é que “lugares, objetos, pessoas têm muitas vidas diferentes.” Soa triste, talvez um tanto vago.
Contudo, adianto que uma das belezas de Dordogne está na capacidade de dar espaço para que jogadores montem paralelos de suas próprias lembranças com a narrativa do título. Paralelos que, graças aos excelentes ritmo e escrita, permitem associarmos entes queridos aos personagens da casa de Dordonha.
O começo de Dordogne
Conhecemos Mimi no primeiro de oito capítulos. Ela está dormindo no banco de trás de seu carro, quando vemos um pouquinho da cara point-and-click de Dordogne. Baixo uma noite de chuva torrencial, Mimi acorda de um sonho repetido, com dor de cabeça e nas costas também. Ah, a passagem dos 30 e algos e para cima!
Acordada pelo celular que vibra em sua bolsa, o cursor é um pontinho simples que se transforma em mão. A tarefa é abrir a bolsa para pegar o aparelho.
Como joguei no meu Xbox Series S, fiz tudo com auxílio do controle, mas imagino que seja mais intuitivo com auxílio de um mouse ou, melhor ainda, se tivesse controle por meio tela sensível ao toque – uma rápida investigação na loja do Switch e nenhum indicador a respeito dessa possibilidade.
Isso não é um entrave, de maneira alguma: há uma sensação cinestésica nesses movimentos já que reproduzimos atos como aqueles de abrir uma bolsa, de empurrar uma porta, girar uma chave. O jogo quer que jogadores se permitam viver os momentos e que esses momentos tragam peso, sejam absorvidos lentamente.
A história de Dordogne começa durante uma época confusa na vida de Mimi, a protagonista: ela perdeu o emprego e Nora, sua avó paterna, em uma semana. Entre as muitas angústias da vida adulta, ela sabe que passou um verão com Nora, mas não tem nenhuma lembrança de antes de seu 13º aniversário. Para piorar, o relacionamento entre seu pai, Fabrice, e Nora era ruim, mas Mimi nunca soube o por quê…
E é em meio a tantas perguntas e incertezas que Mimi surrupia uma carta escrita pela avó em seu nome e que Fabrice havia escondido. Nessa carta, Nora pede que Mimi visite a casa em Dordonha e encontre a caixa com pertences do verão que passaram juntas.
O jogador responde a algumas mensagens do celular de Fabrice, insistente para que a filha não vá até Dordonha, pois a empresa de mudanças vai esvaziar a casa de Nora antes do fim de semana. Assim, quase em desacato, Mimi parte em seu carro para buscar a caixa deixada pela avó.
Um lento acúmulo emocional
Essa premissa me lembrou várias vezes alguns filmes independentes, especialmente Frances Ha (2012) e, claro, o também francês O fabuloso destino de Amélie Poulain (2001). E Dordogne parece se inspirar neste segundo quando o tema é relembrar: a cena fundamental tem Amélie encontrando uma caixa escondida há quase 40 anos e que contém objetos, troféus, frascos de lembranças. Essa descoberta é serendipidade. Em seguida, Amélie parte na busca incessante pelo dono da caixa, que, ao abri-la, recolhe memórias que repentinamente vêm à tona.
A diferença no jogo é que Mimi deve encontrar esses objetos na casa da avó, em Dordonha. Pelos oito capítulos de Dordogne, controlamos Mimi do presente, 30 e poucos anos, em busca desses frascos de lembranças que nos transportam para as férias de veraneio de 1982, para as férias na casa da avó e de algum evento relacionado com tais objetos que marcaram a Mimi de 12 anos de idade. Pode ser uma câmera de fotos instantâneas, um fichário ou mesmo um caiaque.
Uma vez que, além de toda a exploração, devemos colar os fragmentos, ou mesmo juntar os cacos, existe um exercício para o jogador que extrapola o jogo: organizar as cartas, entender os eventos, absorver os desentendimentos familiares. A memória que Mimi encontra é aquela que criamos. E é por isso que Dordogne está envolto em muita nostalgia – mesmo que seus eventos não tenham acontecido.
Eu poderia deixar alguns exemplos a mais, mas eles certamente tirariam parte da surpresa contida nas aquarelas de Dordogne. Por isso, resumo e insisto que muito da mensagem poderosa do jogo talvez venha da ideia de passar tempos na casa dos avós. Um exemplo pessoal: me lembro quando meu irmão e eu ficamos na casa dos nossos avós maternos.
Entre explorar a casa e revirar caixas antigas em busca do autorama dos meus tios, esbarramos numa bancada na qual meu tio caçula havia mantido uma série de anotações na parte de baixo, escondido dos olhos de todos. Quando vi, estava escrito “14 de agosto de 1985, meu sobrinho nasceu, hoje é o dia mais feliz da minha vida”. Isso é serendipidade e Dordogne me transportou para esse dia e me fez experimentar outros mais na pele da protagonista.
E essa pancada de associar pessoas aos personagens é bem mais intensa que aquela encontrada em Spiritfarer. A contraposição é que em Spiritfarer as pessoas se vão e você as associa com familiares e amigos. Em Dordogne, Mimi vai perceber com o tempo e a exploração que se esqueceu de aventuras vividas, amigos feitos, aprendizados dados por Nora – existe uma sensação armaga de “quanta coisa perdi” ou “por que ninguém quis me contar, conversar?”, mesmo com seu clima bucólico e descontraído.
Escrita, visuais e sons
Às vezes, Mimi pode reconstruir a própria história com as várias cartas, os vários postais e as fitas cassete de um gravador portátil. Quanto às fitas, era um passatempo de seus avós deixarem charadas gravadas para os outros.
“O que é, o que é: é fresco quando está quente?” pergunta Nora em uma delas. “É fácil…”, desafia. Na gravação, escutamos Édouard, o avô que faleceu uns anos antes do verão de 1982, respondendo: “É fácil quando se sabe a resposta…”
A qualidade da escrita de Dordogne é excepcional. As cartas, por exemplo, parecem escritas por pessoas diferentes, em épocas diferentes, com sentimentos e prioridades diferentes. O quebra-cabeça que restaura as lembranças de Mimi também acompanha a restauração da vida social de Nora e Édouard com Fabrice, dos desentendimentos entre pais e filhos.
Seja controlando Mimi adulta, seja controlando Mimi criança, os aparatos da época sempre fazem o mundo falar com o jogador. Mimi do presente tem seu celular, assim como as cartas e postais; Mimi de 1982 adquire ao longo de sua jornada uma câmera instantânea, um gravador, um mapa desenhado e as fitas cassete. Para a proposta do jogo, tudo se encaixa encantadoramente bem, sobretudo quando, ao final de cada capítulo, montamos uma página de fichário com as fotos tomadas e os sons capturados naquele dia.
Explorando a região do Dordonha, Mimi também encontra palavras soltas que sintetizam o que ela está sentindo. Algumas aparecem como opções para continuar o diálogo e variam o suficiente de sentido para mudar o curso de uma conversação. Por exemplo: a primeira tarefa nas férias era desfazer as malas de Mimi e colocar as roupas nas gavetas. Para guardar a leva de roupas, temos que escolher entre “mamãe” e “protetora”; no café da manhã, entre “amargo”, “difícil” e “triste”. O comentário seguinte muda e… eu sei disso porque gostei do jogo ao ponto de ter a experiência toda outra vez para buscar as cartas e as palavras perdidas.
Aqui vale reforçar uma coisa: joguei com a dublagem em francês e texto em português do Brasil. Até vi um erro ortográfico ou dois perdidos, mas a tradução brasileira preserva a qualidade original e merece elogios. Quanto à dublagem em seu idioma materno, Dordogne é precioso demais e não o imagino de outra forma: os visuais, a proposta e a ambientação parecem exigir que ouçamos o jogo em francês. Os sons da natureza, do rio e do mercado transportam qualquer jogador ao instante (re)vivido por Mimi.
Acredito que agora venha a parte mais difícil de equilibrar uma crítica, afinal, se por um lado as aquarelas sobrepostas a modelos tridimensionais são belíssimas e retratam interior da França, por outro, a animação e execução de muitas ações para modelos com estas texturas ficaram brutas em várias ocasiões.
Não se engane: há mais méritos que deméritos no que vou dizer. A câmera é quase sempre semifixa, porém nem sempre acompanha a velocidade da movimentação de Mimi ou do caiaque, ficando para trás com frequência. Os objetos e as barreiras no cenário nem sempre estão claras ou nem mesmo visíveis. Quando Dordogne está em movimento, alguns momentos foram executados com precisão e beleza, como os feixes de luz entrando no quarto de Mimi. Mas não é raro termos saltos de texturas, pisques e, repentinamente, o jogo passa de gracioso a um tanto desajeitado. Pelo menos visualmente falando, pois, se você me perguntar quanto isso atrapalhou a minha experiência, eu diria que quase nada.
Definitivamente, a aventura e o mistério de Dordogne triunfam sobre os encantos e as falhas técnicas.
Vale a pena jogar Dordogne?
Ouvimos na sequência da fita com a charada de Nora: “Pão. Essa é a resposta. Pão está fresco quando sai do forno e, por isso, está quente também”. Nem se trata tanto da charada, mas de sentir personagens vivos, com emoções, que brincavam e brigavam entre si. É dificílimo avaliar Dordogne como um jogo e não como uma experiência digital – não há antagonista, não se trata de vencer, perder ou sobreviver. Ainda assim, por mais que queira recomendar a todos, sei que a exploração lenta e o estilo point-and-click não são os grandes chamarizes para a maioria dos jogadores.
Graficamente tão belo quanto, às vezes, atrapalhado, Dordogne foi uma experiência bem única nas minhas jogatinas recentes e capaz de me transportar de verdade para dentro da história do jogo, capaz de me fazer importar com Mimi, Nora, Fabrice e os demais e de saber ouví-los para entender o que aconteceu entre eles. Recuperar as lembranças de Mimi foi tão satisfatório quanto ler um livro gostoso, mas comigo no controle. Quando subiram os créditos, a única maneira de buscar as palavras e as fitas que não encontrei era começando um jogo novo. Fiquei pensando por uns instantes se eu iria embora se já conhecesse a história. E mesmo assim o fiz e, sim, valeu a pena.
Portanto, se algo do que disse acima fez sentido ou você se identifica com os filmes ou essa dinâmica, coloque Dordogne na lista de desejos. O título, publicado pela Focus Entertainment, chega hoje para Xbox Series X|S, Xbox One, PlayStation 5, PlayStation 4, Nintendo Switch e PC, via Steam.
*Review elaborada em um Xbox Series S, com código fornecido pela Focus Entertainment.
Pizza Fria
Reviews, notícias e tudo sobre o mundo dos gamesPor Carlos Maestre, Pizza Fria
Atualizado em 13 Jun 2023.