Guia da Semana

Foto: Sxc.Hu

Cresci sob o paradigma do feminismo. Questionar a igualdade dos sexos seria idiota.
- Cadê o fogão? Penso, sem perceber o que falar.

- Esse espaço foi projetado sem fogão, senhora.

- Nem forno elétrico, micro-ondas...

- O local é dedicado a pessoas solteiras de classe alta, que trabalham fora e não cozinham.

- Sim. Mas elas comem?

O diálogo saiu quase assim em uma exposição de arquitetura. Saí de lá pensando no futuro das cozinhas. Que o dono daquela casa fictícia não cozinhe, ok; muita gente não cozinha. Mas todo mundo precisa ferver água ou aquecer alguma comida.

Com o preço exorbitante do metro quadrado, cada vez mais as casas encaixam-se em medidas ínfimas. Assim, a cozinha de hoje é o lavabo de ontem. Mal cabe um fogão, mesmo transformado em cooktop.

Tomo por mim. Eu e meu marido, que adoramos cozinhar e nos acotovelamos por um lugar à pia. Por isso, quase sempre, um de nós cozinha e o outro fica na sala.

Pense comigo, caro leitor: você trabalhou o dia inteiro, matou vários leões, pegou fila, pegou trânsito. Chega em casa, toma um banho e quer relaxar, passar um tempinho com a família, certo? Nada mais chato do que ficar enfiado sozinho em uma cozinha desconfortável.

Há alegações de que as cozinhas estão menores porque, hoje, as pessoas passam menos tempo cozinhando. Tenho dúvida se quem vem primeiro é o ovo eu a galinha. As cozinhas estão menores porque as famílias passam menos tempo nelas, ou as famílias não se encontram mais na cozinha porque elas são minúsculas? Os espaços estão "imoráveis", para não dizer imorais.

Lembro das cozinhas da minha infância. Acho que estou ficando saudosista. À mesa da cozinha, a vida se desenrolava. Aprendi a ler, fiz muita lição de casa, estudei para o vestibular, redigi teses. Não se pode dizer propriamente que minha mãe cozinhava, mas ela fazia a comida e a gente tomava café, almoçava, lanchava e jantava. Sobre a mesa, desfilavam baralho, damas, dominó, lápis de cor, brinquedos, discos, roupa para dobrar, chaves de carro, coleira, ferramentas, óculos, contas. Lá eu descascava mexerica enquanto contava como foi meu dia. Lá se lia o jornal. Lá se programava o dia seguinte, o final de semana, o amanhã. Muitas vezes, lá rezei. Ouvíamos as notícias e discutíamos muito. A família se desentendia, fazia as pazes e brigava de novo, tudo na mesa da cozinha. Que saudade.

Além de cozinhas extirpadas - onde não cabe nem fogão, quanto mais vidas inteiras -, outro fenômeno me preocupa: a cozinha mutante.

Coleções de panelas francesas e batedeiras profissionais caríssimas enfeitam cozinhas que simplesmente não são cozinhas. Lembram um estúdio, um home theater, até uma biblioteca. São espaços cenográficos, com luz indireta, bancos de design, objetos de decoração, estante de livros, quadros, LCD, eletrônicos de última geração, paisagismo, papel de parede e até tapete. Não o tapete da avó, tipo passadeira. Tapete mesmo, tipo persa.

A cozinha está lá, mas é como se não estivesse. Onde não diminuiu até quase desaparecer, foi transfigurada até parecer outra coisa. A cozinha moderna é o Michael Jackson dos cômodos: mudou tanto que ficou irreconhecível.

As cozinhas gourmets prometem um resgate como área de convivência, mas penso que se perdem ao fugir do simples, usando referências que não lhe são próprias ou integrando-a demais a outros espaços da casa. Na sensação de que se perde algo ficando só na cozinha, a cozinha se perde.

Seguirei elaborando essa ideia. Quiçá, em um bate-papo animado regado a quitandas e café com leite, numa boa mesa de cozinha.

Leia as colunas anteriores de Rosa Fonseca:

Comida, substantivo feminino

Via um Miojo ai?

Sob Velas e Holofotes

Quem é a colunista: Com formações em Publicidade e Gastronomia, Rosa Fonseca é chef de cozinha, professora e colunista.

O que faz: Trabalhou em restaurantes como o Félix Bistrot e o Beth Cozinha de Estar. Hoje, atua como Personal Chef,

Pecado gastronômico: Chocolate e queijo da Serra.

Melhor lugar do Brasil: Minha casa.

Fale com ela: [email protected]

Atualizado em 7 Ago 2012.