Guia da Semana

Foto: Restaurante Sinhá

Hoje o texto é bem "arroz-com-feijão". "Café-com-leite" mesmo. Um manifesto a favor do bom e velho arroz com feijão, que gradualmente vem deixando o prato - e a vida - dos brasileiros.

Defendo o arroz com feijão contra o macarrão, a pizza e o hambúrguer. Nada tenho contra a divina massa ou o santo sanduíche, mas quando um estrangeiro perguntar qual é o prato mais recorrente na nossa mesa, o quê diremos? Massa? Essa especialidade já tem dono. Até os americanos, com sua pseudo-gastronomia, têm o hambúrguer como ícone.

As vantagens nutricionais do arroz com feijão são conhecidas. Por isso, vou além: o arroz com feijão é ou não é um símbolo nacional? Trocaremos o futebol pelo beisebol?

Um espanhol, que ficou dias em São Paulo, reclamou que não conseguiu experimentar arroz com feijão. Entender é fácil: o restaurante do hotel era francês. Nas imediações, havia estabelecimentos japoneses, tailandeses, mexicanos e fast-foods que vendiam de esfiha a batata inglesa. Seus anfitriões, querendo impressionar, levaram-no a um bom restaurante italiano. Mas nada de feijão.

Cada vez mais, o brasileiro médio - assim como o turista - come fora de casa, onde é mais fácil encontrar a dita cozinha internacional do que a bendita culinária verde-e-amarelo. Hoje, o brasileiro gasta 25% da renda familiar em refeições na rua e em dez anos a previsão é que o índice chegue aos 40%, valor próximo ao dos EUA, país campeão da refeição outdoor.

Vale lembrar que o Brasil é um país de contrastes, onde índices de obesidade dignos de 1º. mundo dividem cena com quadros de desnutrição indignos até para o 4º. mundo. De um lado, por absoluta falta de escolha, não tem arroz com feijão. De outro, por absoluto excesso de escolha, também não. O arroz com feijão figura como ponto de equilíbrio da dieta socialista.

Outra vantagem do arroz com feijão é mais simples: precisa sentar pra comer. Junto com o arroz e feijão defendo aqui a idéia de sentar-se à mesa com a família, com a TV desligada, agradecer o alimento e comer - pausadamente, conversando, saboreando, convivendo, relaxando. Educação alimentar é muito mais do que acostumar-se a comer espinafre. É educar o paladar, a mente e a alma através do próprio ato de alimentação.

Papai era um menino durante a Segunda Guerra. Portugal, país onde vivia, não entrou oficialmente no conflito, mas abastecia as forças militares de outros países, de modo que faltava comida para a população. Nessa fase, meu pai aprendeu muito sobre comida. Aprendeu a cozinhar e comer com devoção tal que põe muita cerimônia do chá no chinelo. Aprendeu a esperar, criar e compartilhar.

Fazendo uma avaliação, percebo que aprendi quase tudo o que sei em torno da mesa, e me refiro mais a questões elementares do que alimentares. Respeito, igualdade, fraternidade, disciplina, ciências políticas, as regras do futebol e o gosto por vinho são só alguns exemplos de educação alimentar e elementar que tive o privilégio de receber. Se a comida fosse entregue pelo motoboy e devorada na frente do computador, minha educação teria sido mais pobre.

Nas primeiras décadas do século XX, a mulher passava cerca de oito horas por dia cozinhando. Os indivíduos quase não iam a restaurantes, mas passavam cerca de 3 horas por dia à mesa. Hoje, apesar do boom gourmet, a estatística mundial por refeição é de 15 minutos na cozinha e dez à mesa. Inventamos a tecnologia e conveniência, mas também sofremos com elas.

Uma pesquisa demonstrou que, a cada geração, as crianças brasileiras conhecem menos frutas. Boa parte das crianças pesquisadas não foi capaz de reconhecê-las pelo aroma e sabor. Muitas não tinham idéia de a que frutas correspondiam àquelas imagens. Fruta fresca é como ET: todo mundo já ouviu falar, mas não sabe que forma tem.

O maior acesso a alimentos não tem sido sinônimo de maior acesso ao sabor. Analogamente, o maior acesso à educação formal não necessariamente tem resultado em um incremento da educação moral.

Termino essa coluna incluindo, à direita do arroz com feijão, as frutas, os legumes e... os restaurantes self-service!

Sim, neste site, onde é possível encontrar alguns dos melhores restaurantes do país, atrevo-me a enaltecer o simplório self-service. A despeito de críticas, o self-service é um serviço de alimentação 100% canarinho, a resposta tupiniquim ao fast-food. Graças a ele, o arroz com feijão chega caloroso, mesmo a quem não come em casa e mantém a saúde e a cultura do brasileiro. Rápido, econômico, democrático, nutritivo, nacional.

Quando Fernando Pessoa escreveu "minha pátria é minha língua", não sugeria um nacionalismo xenofóbico. Apenas dava luz a coisas triviais como a língua e a culinária, das quais depende a preservação de nossa identidade. Se a nossa pátria é também o nosso prato, esperemos que o Brasil não seja nem um país de pratos vazios, nem cheios de gorduras trans.

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Quem é a colunista: Rosa Fonseca, comunicóloga e cozinheira.

O que faz: Compõe a cozinha do Félix Bistrot, restaurante francês. Paralelamente, também é redatora e consultora de comunicação.

Pecado gastronômico: Chocolate.

Melhor lugar do Brasil: Florianópolis.

Fale com ela: [email protected]

Atualizado em 7 Ago 2012.