Guia da Semana

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Lambuzar-se com um doce
nunca mais será a mesma coisa?
Tenho saudades da época em que era possível comprar produtos no supermercado e comê-los com ignorância. O sal ainda não era vilão, desconhecíamos a gordura trans e não se falava nos efeitos do açúcar na hiperatividade das crianças. Se o colesterol existia nas discussões médicas, pelo menos estava ausente das embalagens e dos papos do dia-a-dia. Sinto falta de abrir a despensa sem ter que encarar um muro de tabelas de informações nutricionais me anunciando o fim do mundo.

O pior das tabelas de informações nutricionais é que elas parecem que estão lá só para nos torturar. Estou olhando para uma embalagem de batatinhas fritas (não tenho vergonha de afirmar que, de vez em quando, me dá vontade de comer algumas besteiras) e a culpa já começa na primeira informação: "porção de 25 gramas = 1 ½ xícara". Quem decidiu que uma porção é 1 ½ xícara? Ninguém consegue só comer 25 gramas de batatinhas fininhas, crocantes e irresistíveis. Tenho certeza que a empresa que vende este produto concorda, já que a embalagem que comunica que a porção é de 25 gramas é uma embalagem individual de 45 gramas.

Também me lembro quando ainda era possível desfrutar de uma refeição inteira sem receber um discurso de um amigo, parente, garçom ou até vizinho de mesa sobre os males da comida. Agora nunca falta o "amigo" que te informa que você não deveria comer carboidrato à noite. Ou o "bom samaritano" da mesa ao lado que te avisa que a sobremesa que você está prestes a colocar na boca é mais calórica que os três pratos que você comeu antes. Ou a garçonete que responde a tua pergunta sobre o melhor prato de carne da casa com um: "minha dieta atual elimina toda proteína animal, mas se o senhor realmente gosta (querendo dizer ´não se importa em se matar´), nossa picanha é uma ótima pedida".

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Temos muitíssimas informações sobre o que comemos, centenas de livros sobre dietas, sites e programas de televisão sobre nutrição, e o mundo parece estar cada vez mais gordo em uns casos, magro demais em outros e, definitivamente, mais paranóico em todos. Antigamente, as crianças e adolescentes tinham corpos magros e esbeltos em geral. Entre os 20 e 30, davam uma encorpada. Depois da chegada dos filhos, assumiam uma barriguinha e acabavam seus dias usufruindo o direito universal dos vovôs e das vovós: um físico relativamente arredondado. Hoje, temos essas fisionomias em seus mais exagerados extremos em todas as faixas etárias.

No lugar de nos preocuparmos tanto com o conteúdo químico e nutricional dos alimentos, deveríamos rever nossos comportamentos. Devemos voltar a tomar café em casa, preparado por um ser querido. Temos que parar na hora de almoço para comer com tempo no lugar de engolir um sanduíche na frente do computador. Deveríamos ir andando para a feira em vez de ir de carro até o supermercado e voltar a comer os produtos da estação, para evitar o consumo de coisas de outras latitudes ou quimicamente alteradas para ficarem "fresquinhas" o ano inteiro.

E, se por questões legais, teremos que continuar lidando com as tabelas de informações nutricionais, proponho que nelas sejam incluídos alguns pontos adicionais: depois das calorias de valor energético, temos que colocar as calorias de felicidade; entre as gorduras saturadas e a gordura trans, gostaria que me indicassem as unidades de infância incluídas numa porção e, junto com as fibras alimentares, temos que colocar a quantidade de fibras de memória que se entrelaçam com nosso histórico matando deliciosamente nossas saudades.

Leia as colunas anteriores do Hugo:
  • Pedido para Iemanjá: confira uma receita do colunista para dar um fim aos preconceitos gastronômicos.
  • Cidade do México, 6 de janeiro: mesmo não sendo tão presente no Brasil, a tradição da Rosca de Reis deixa muita gente com saudade.



    Quem é o colunista: Hugo Delgado, mexicano que mora no Brasil há sete anos.
    O que faz: é dono do Obá Restaurante.
    Pecado gastronômico: quando cozinho em casa, adoro enfiar meus dedos nas panelas, nos molhos, nas saladas, para provar as coisas com as mãos. Minha vovó provavelmente me daria um tapa na mão com colher de pau. Mas a verdade é que isso me dá um prazer enorme!
    Melhor lugar do Brasil: estar na mesa de qualquer grande cozinheira caseira


    Fale com ele: [email protected] ou visite o Obá (Rua Melo Alves, 205, Cerqueira César, São Paulo. Fone: 11 3086-4774).

  • Atualizado em 7 Ago 2012.