Guia da Semana

Foto: Sxc.Hu

Uma cesta de frutas enorme resplandece no centro da minha mesa. Maior orgulho. Remeto-me à infância, à casa da minha mãe, sempre farta delas. Sinto-me magra, saudável, mais jovem, mais bonita, política e ecologicamente correta. O problema é que você é um só e come uma peça de fruta por dia, quando muito.

Recentemente, fiz uma pesquisa sobre as bizarrices alimentares das pessoas que pela primeira vez têm o seu próprio lar - jovens que moram sozinhos e gente que casou ou descasou sem nunca ter tido a experiência gerenciar a própria vida.

Conheci uma pessoa que comprava frutas por causa do caixa do supermercado. "Ele vai olhar aquele monte de tranqueira pronta e pensar que EU sou uma tranqueira. Compro umas frutas pra ele achar que eu sou só uma pessoa muito ocupada". Incrível.


Impossível não lembrar o tempo que morei sozinha. Rio de mim e rio mais ainda por ter me tornado chef. A vida é irônica.

No meu caso, a fruta servia para enganar a mim mesma. O problema é que as frutas só são lindas, coloridas e perfumadas por alguns dias. Depois, ficam opacas, murchas e com cheiro de meia. E tem aquelas mosquinhas. Sei que todo mundo sabe disso, mas o que nem todo mundo sabe é que quando você mora sozinho, encara como nunca esse tipo de realidade.

Eis a hora da decisão: ou você come a coisa porque está estragando (odiava quando a minha mãe dizia: "come, filha, que está estragando!". Argumento mais besta.) ou joga fora. Aí você lembra que tem gente que não tem o que comer (a mãe dizia isso também). Resultado: nem come, nem joga fora: só esconde a coisa feia no fundo da geladeira.


Assim, a população de itens não comestíveis vai aumentando: os restos de comida, doces à base de ovos, leite da semana passada, iogurte aberto, pão mofado... uma variedade de microrganismos vivos que não pertencem à família dos lactobacillus.

Da enorme lista de constatações que você só atesta quando mora na sua própria casa, talvez as duas primeiras sejam:

1. Alimentos têm mesmo data de validade

2. A vida resiste nas situações mais inóspitas

Soube de gente que resolveu a questão logística comendo exclusivamente diet shake. Têm também os menos radicais, adeptos da pipoca de microondas, comida congelada, torrada com margarina, bolacha, cereal, delivery e sorvete. Aliás, a compulsão por comer um único tipo de alimento durante dias (ou semanas, ou meses) é recorrente.

Eu mesma tive a fase do pão de queijo, da lasanha, do leite condensado, do Miojo. Aaah, a fase do Miojo! Quem não passou por ela atire a primeira pedra em Maria Madalena. Lembra daquele slogan: "Existe mil maneiras de preparar Neston"? Tenho a convicção de que se um alimento poderia encarar o desafio é o Miojo. Criei umas 39 variações (todas com gosto de Miojo, por que isso não muda), que me disponho a detalhar em um livro de receitas para situações de guerra, se editado.

Há quem argumente que essas fases comendo a mesma coisa decorrem do tamanho das embalagens. Entendo e apoio. Eu mesma começava a comer uma pizza na sexta e só terminava no domingo. Mas acho que não é só.

Assim como as frutas amadurecem, a geladeira de que quem está aprendendo a se cuidar também amadurece - bem mais lentamente, é fato, na velocidade particular com que cada um muda, cresce e se renova. Conforme as pessoas testam os alimentos, testam a si: seus limites e preferências, sua adaptabilidade, sua criatividade, sua disposição, sua disciplina. A formação do gosto é resultado dessa dinâmica de tentativa e erro.

Depois da fase trash, passei a pilotar o fogão. Saiu muita gororoba, mas também nasceram alguns pratos de que me orgulho. Como nunca planejava as compras e detesto lavar louça, criei o Risoto Real - que suja uma única panela. Funciona assim: você abre a geladeira, cai na real do que tem e faz um risoto! Daí derivou a Massa Real. Dessa fase, guardo com carinho duas criações: o farfale de gorgonzola com tomate fresco e o risoto de camarão com coco e alecrim, resultados do acaso que deram certo e são sucesso garantido em dia de visita. Só de pensar dá uma fome... Vai um Miojo aí?

Leia as colunas anteriores de Rosa Fonseca:


Sob Velas e Holofotes

Jantar do século: bastidores, impressões e divagações


Comer com prazer

Quem é a colunista: Com formações em Publicidade e Gastronomia, Rosa Fonseca é chef de cozinha, professora e colunista.

O que faz: Trabalhou em restaurantes como o Félix Bistrot e o Beth Cozinha de Estar. Hoje, atua como Personal Chef,

Pecado gastronômico: Chocolate e queijo da Serra.

Melhor lugar do Brasil: Minha casa.

Fale com ela: [email protected]

Atualizado em 7 Ago 2012.