Guia da Semana



Cada olhar traduzia a ansiedade do reconhecimento e a expectativa pelo encontro. Aos poucos, os olhares esbarravam uns nos outros, fosse no saguão do hotel, no restaurante, nas calçadas de Copacabana. O sorrir tímido e meio desconfortável tornava-se padrão entre os artistas. Como começar uma conversa? Como não invadir a intimidade alheia se a única vontade era devorar o outro universo? Como não dizer bobagens nem expor ignorância? Os primeiros encontros entre os participantes do Festlip - Festival de Teatro da Língua Portuguesa - foram silenciosos, cúmplices, investigativos e, sobretudo, através do olhar.

Estavam lá Brasil, Guiné Bissau, Angola, Cabo Verde, Moçambique e Portugal, cujas presenças se estendiam também a convidados. A mãe-pátria, que durante séculos desenhou poder sobre as demais, agia livre do incômodo histórico, enquanto as filhas colonas observavam e intimidavam. Sim, é preciso lembrar que muitos desses países estão livres apenas agora, e que temos a sorte do abandono há séculos, o que nos determina mais independentes do passado.

Surge, aí, a primeira conclusão: não contamos mais nosso passado, não necessitamos reviver o ontem e o início, estamos livres das amarras históricas e, portanto, das culpas e dos julgamentos. Podemos nos lançar ao desafio da linguagem, redesenhar técnicas, abordar abstrações humanas e, a partir daí, dialogar com o mundo em seu tempo presente. Muitos dos outros países, não. Sobre o palco, a vontade se converte em possibilidade e necessidade em recontar a origem não mais pelo prisma do branco colonizador. Subir ao palco significa romper as armadilhas do impedimento, aproximar o homem de si mesmo, dando-lhe força para reencontrar-se e renascer.

Os espetáculos de Angola que estiveram no Rio de Janeiro foram assim, como se abanassem qualquer tradução para resgatar o original. Na perspectiva desse olhar que resgata o si, a ingenuidade técnica e estética sugere a vontade da fala. Por enquanto, querem poder dizer, gritar. Chegará, certamente, o dia em que o como surpreenderá o público. Como avaliar o trabalho de Guiné Bissau ao sermos lembrados que o país só possui uma única sala de teatro? Através da criação do Grupo de Teatro do Oprimido de Guiné Bissau, os artistas trazem para dentro da arena a necessidade do pertencimento. Trabalhamos com mutilados de guerra, me diz o diretor, enquanto os olhos grandes e amarelos absorvem as vergonhas dos meus. Moçambique e Cabo Verde já se soltaram das amarras em elaboradas dramaturgias e ótimos atores. Meninos ou adultos, os dois países conduzem a encenação e a palavra a outras experiências, e reparo sermos mais próximos a Portugal, ao teatro europeu aristocratizado pela vontade de construir conceitos próprios, com certo teor parnasiano em se utilizar a arte para falar sobre a própria arte...

Apresentação após apresentação, os países foram se encontrando. Uma cerveja gelada na praia, um violão e tantos ritmos, risadas em sotaques diversos.


O Festlip não quer reunir países e transformar tal reunião em estratégia de diferenciação para uma casualidade do marketing momentâneo. Na maneira como se organiza, se coloca, o foco maior é o encontro, a permanência das relações construídas ao longo de duas semanas. São necessários poucos dias para que os olhares se configurem abraços e conversas e nasça tamanha cumplicidade que se torna impossível não nos reencontrarmos amigos. Cada qual em seu continente, cada um com suas verdades, e o apaixonar-se pelo outro como viés fundamental.

Tantos são os festivais pelo Brasil afora, mas quantos, verdadeiramente, têm como princípio o intercâmbio entre pessoas? O Festlip não reúne espetáculos diversos. Vai além. Aproxima culturas, histórias, olhares. E não é à toa haver entre os artistas presentes alguém chamado Amor. Simples assim. Amor.

Ir a festivais é sempre uma grande diversão. Ir ao Festlip trouxe, de maneira essencial, a capacidade de olharmos para nós mesmos, provando ser possível organizar esses encontros indo além do comércio numérico de participantes e de curadorias exibicionistas que, quase sempre, interessam-se mais pelo artista do que a própria arte. Quem dera o exemplo e a vocação do Festlip atingisse definitivamente as políticas públicas em traduções mais responsáveis e menos narcisistas. Talvez isso provocasse uma deliciosa e incontrolável revolução.

Quem é o colunista: Ruy Filho.

O que faz: diretor e dramaturgo.

Pecado gastronômico: carpaccio de pato do Piselli.


Melhor lugar do Brasil: Salvador fora de temporada.


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Atualizado em 6 Set 2011.