Guia da Semana


Foto: Divulgação

A peça Gaivota - Tema Para Um Conto Curto, em cartaz no SESC Pinheiros, pode ser considerada um braço estendido de Ensaio.Hamlet, também dirigida por Enrique Diaz, pela estruturação da cena, pela desconstrução da escrita e no reaver da história pelas referências atualizadas.

Se Tchecov, à primeira olhada, relembra um passado de passagem entre séculos, em uma Rússia desprovida de vontade e alegria, a montagem de Diaz reaproxima-o no espelhar nossas almas em seus vazios, em suas falácias ideológicas, na transitoriedade do efêmero travestido de imediatismo, no confronto entre o comodismo conservador e o desestabilizar vanguardista.

Muitos já falam sobre Tchecov. E não sendo especialista, prefiro deixá-lo aos outros. A Gaivota, como em Hamlet, traz a "peça-dentro-da-peça" - utilizando o termo cunhado no programa.

A montagem de Diaz traz o ensaio-dentro-da-montagem. E acumula, no sobrepor de uma estrutura instigante, em forma de jogo, uma perspectiva fractal de como a cena pode conduzir e ser conduzida simultaneamente pelas realidades do jogo e ficção.

Primeiro temos a peça escrita por Tchecov, depois a peça do personagem Treplev, então o ensaio como linguagem estética, a montagem tendo o ensaio como base dramatúrgica, e finalmente o espetáculo.

Como se assistíssemos ao drama criado por Tchecov para Treplev, Diaz nos fornece angústias próximas, a partir do processo de criação e motivações para a realização do espetáculo. São atores se questionando pelas falas de Treplev, na verdade. São "trepleves" distribuídos fragmentados e lutando por se encaixar em uma construção que os traduzam. Treplev e os atores são os mesmos, então.

Atores sobrepondo suas falas, elementos cenográficos movidos a todo instante sem nem sempre haver uma função, iluminação precisa, figurinos trocados... A direção vai além da obviedade do fazer uma cena corretamente para instigar o público ausente do processo inicial a participar desde o início. Como se traduzisse aos desavisados o que vem a ser teatro, com seus necessários ensaios, estudos, aprofundamentos, questionamentos, crises, disputas, erros e estados.

Na consistência do meta-teatral, o teatro surge por completo, aprisionando o espectador, incluindo-o, exigindo dele a disponibilidade perceptiva para compreender que Tchecov é antes de tudo um pedaço do homem de hoje, e que mais importante do que traduzi-lo ou entendê-lo é recuperar sua face no que pode haver de humano em todos nós.

Se A Gaivota não traz mais o frescor da descoberta de Ensaio.Hamlet, ainda assim serve ao propósito de estudar outras possibilidades em se lidar com a dramaturgia e o ator. E faz do teatro de Enrique Diaz e da Cia. dos Atores um respiro necessário para a cena nacional. É esperar para se embriagar com tudo o que ainda há de vir por aí.

Leia as colunas anteriores de Ruy Filho:

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? El Chingo e os fantasmas de cada um


? Com prosecco e qualidade


? O teatro candango e a morte de todos os dias


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? A ciência como pretexto dramático


? A alma decepcionada frente à realidade


Quem é o colunista: Ruy Filho.

O que faz: diretor e dramaturgo.

Pecado gastronômico: carpaccio de pato do Piselli.


Melhor lugar do Brasil: Salvador fora de temporada.


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Atualizado em 6 Set 2011.