Guia da Semana

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Muito do que vejo por aí ser denominado por teatro experimental permeia aspectos contraditórios, focalizando, sobretudo, a falta de perspectiva do que realmente pode assim ser compreendido. Ousadias estéticas e tratamentos diferenciados em estruturas mais conservadoras são, de fato, suficientes para denominar um trabalho por experimental? Ou a mera desconstrução dramática e dramatúrgica? De que modo podemos dialogar com o experimentalismo no contemporâneo, uma vez que o pós-moderno nos liberta da vanguarda e nos aceita incoerentes? Deparo-me rotineiramente com tais questões em salas de aula e nos silêncios das plateias.

Antes é preciso ratificar diferenças estruturais fundamentais entre os sentidos de vanguarda e experimentalismo. No primeiro, a necessidade da contraposição conceitual e estética é parte crucial para sua formulação, como o romântico ao clássico, o realismo ao romântico, o abstrato à figura. Os preceitos modernos de superação e substituição são abandonados no movimento pós-modernista. Neste, a convivência é atributo de agregação e a incoerência entre os termos explicita a construção híbrida daquilo que não se propõe negar. Quase toda a arte contemporânea se traduz, hoje, pelo amálgama formado pelo surrealismo, abstracionismo, minimalismo, barroco e pop. Há muito de muito nos trabalhos apresentados nesse tempo.

Portanto, o experimental deixara de ser no pós-moderno necessariamente vanguardista, assumindo para si outros valores e independências frente ao fazer criativo.

Para que possamos compreender o experimentalismo de uma ação, faz-se necessário identificar aquilo que não é. A contraposição espelha a identidade na qual buscamos. Nos trabalhos tradicionais - não gosto do termo conservador, pois este se opõe necessariamente ao princípio da vanguarda - os instrumentos são condicionados a um parâmetro essencial: a comunicação. Sim, é do trabalho tradicional a perspectiva de comunicar, abrir diálogos objetivos entre arte e espectador, seja pela identificação do que lhe é comunicado, seja pela oposição ao trazido.

Comunicar, entretanto, pressupõe a condicionante de possuir algo essencial a ser apresentado pelo viés da verdade dogmática, as tais verdades universais. E é aí que o caldo engrossa, pois os dogmas em si fundamentam-se sob a proposição de morais dualistas. Certo e errado, bem e mal, aquilo ou isso. A verdade trazida ao espectador como sublime identificação dogmática atribui à comunicação seu veio direto do que e como a mensagem deve ser compreendida. Tal relação constrói no receptor a sensação de pertencimento ao coletivo, já que a verdade insinuada diz respeito a todos de modo a nos equalizarmos uns aos outros perante algo dogmático e se expande à sensação de participatividade, ao nos induzir ao sentimento de estarmos todos no mesmo caminho.

Dessa maneira, portanto, o teatro tradicional fundamenta sua estrutura, a partir da valorização de morais e dogmas, e enxerga sua função como princípio educativo e de atribuição social.

Já o experimentalismo deriva outros atributos em sua constituição. Partindo do pressuposto de caber à arte qualquer objetividade comunicativa, a arte experimental prioriza a capacidade subjetiva da interpretação e individualiza o sujeito frente ao coletivo. As questões surgidas são diagnósticos pessoais e não mais preceitos fortalecidos em verdades universais. A verdade, se ainda a há, se releva no receptor e não na arte, condicionada, por sua vez, ao papel de instrumento de sensibilização. Para que o processo efetive-se é necessário afastar do contexto qualquer subsídio moral e dogmático. Não cabe, por conseguinte, ao artista atribuir verdades, mas superar a moralidade e revelar em liberdade de julgamentos e culpas possibilidades outras que o espectador, aprisionado na realidade da convivência social, está impossibilitado de possuir.

O teatro experimental revela-se, finalmente, na capacidade do artista destituir o discurso de valores morais e verdades universais, transpondo ao trabalho a ausência de dogmas e julgamentos.

No instante em que o público recebe a possibilidade de individualizar sua interpretação, está, consistentemente, a experiência de lidar com a ação artística. E, semanticamente, experimentação nada mais é do que a reunião entre experimentar e ação.

Há pouco disso no teatro experimental atual. Mas, talvez, pelo simples fato de estarmos todos preocupados em sermos ouvidos, em tornar o trabalho instrumento da comunicação de uma verdade inventada ou descoberta. Há certa soberba no achar-se necessário, e muito pouco de arte, ao fim.

Quem é o colunista: Ruy Filho.

O que faz: Diretor e dramaturgo.

Pecado gastronômico: Carpaccio de pato do Piselli.


Melhor lugar do Brasil: Salvador fora de temporada.


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Atualizado em 6 Set 2011.