Guia da Semana


Foto: Divulgação

Por volta dos 30 anos de idade, o velejador Beto Pandiani reencontrou seu amigo Marcus Sulzbacher em um shopping. Foi lá que os dois deram o pontapé inicial para um projeto que ainda hoje é tido por muita gente como uma loucura: navegar entre os Trópicos de Câncer e de Capricórnio com um catamaran, barco à vela pequeno, aberto e sem cabine.

Inspirados na viagem feita pelo naturalista alemão Alexander von Humboldt, em 1800, em fevereiro de 1994, eles partiram de Miami e navegaram cerca de 13,5 mil km entre mares e rios até aportarem em Ilhabela, no litoral paulista. O trajeto está eternizado no livro Entretrópicos: De Miami a Ilhabela a bordo de dois Hobie Cats 21. Escrita pelo jornalista Xavier Bartaburu, a obra conta com fotografias de André Andrade, Gui Von Schmidt, Roberto Linsker e manuscritos do próprio Pandiani.

O Guia da Semana entrevistou Beto, que além de velejador hoje também é palestrante. Aos 52 anos, ele não pretende parar de se aventurar mar adentro. Um de seus projetos futuros é atravessar a Passagem Noroeste, na região mais gelada do Canadá.

Guia da Semana: Como surgiu a ideia de fazer uma viagem entre os trópicos de Câncer e de Capricórnio?
Pandiani: A primeira conversa a respeito da viagem aconteceu em um dia de fevereiro de 1993, dentro do Shopping Iguatemi (em São Paulo), onde encontrei o Marcus Sulzbacher acidentalmente. Paramos para bater papo e depois de mais de três horas nascia a ideia de velejar de Miami a Ilhabela em dois Hobiecats 21 pés.

Guia da Semana: Quais são as principais características e peculiaridades do Hobiecat 21?
Pandiani: O barco é um catamaran pequeno, aberto, sem cabine, leve e ágil. Tem como característica navegar em lugares rasos e pode entrar em praias, coisa impossível para veleiros oceânicos.

Guia da Semana: Quanto tempo de planejamento foi necessário para a viagem? O que deve ser levado em conta na etapa de planejamento?
Pandiani: Foram exatos 12 meses até o dia da partida. Depois do "misterioso" encontro passamos a trabalhar na logística e na venda do projeto. Deve-se pensar em todas as circunstâncias pelas quais dois barcos sem cabine podem passar ao velejar da América do Norte até o sudeste do Brasil. Como nossos barcos não tinham cabine, montamos uma logística de velejar de dia e pararmos à noite para dormir em alguma ilha do Caribe. Na parte fluvial, transformamos um dos barcos em barco-casa para dormirmos protegidos dos mosquitos dentro da floresta amazônica. Na costa do Brasil, a ideia era dormir nas praias até chegar a Ilhabela.

Guia da Semana: Quais os principais locais em que vocês aportaram? Como vocês faziam para dormir e comer?
Pandiani: Paramos em muitas ilhas caribenhas, como Nassau, República Dominicana, Porto Rico, Saint Barthelemy, Martinica e Trinidad e Tobago. Comíamos nossa comida liofilizada ou em pequenas vilas, iate clubes ou cidades. Para dormir, montávamos barracas em cima do barco, cada vez em uma praia.

Guia da Semana: Qual a sensação de estar no mar?
Pandiani: A melhor possível, quase um alívio, uma sensação de segurança que conforta o coração. Longe do louco tráfego barulhento, longe das notícias, da violência, enfim, em paz.

Guia da Semana: Durante o percurso aconteceu algo inusitado? Vocês viram algo que não esperavam?
Pandiani: Aconteceu muita coisa, foram 289 dias de viagem. Foi a viagem mais recheada de boas histórias. Recomendo o livro O Mar é Minha Terra. Para ser bem econômico nas palavras, vimos tornados, quase fomos pegos por uma enorme tempestade em Nassau, dormimos em tribos Ianomâmis bem primitivas, em aldeias de pesca, casa de pessoas desconhecidas e em base da Marinha Venezuelana. Na subida do Rio Orinoco, passamos por muitas corredeiras e, somente na parte fluvial, percorremos mais de 5 mil quilômetros de rios amazônicos.

Guia da Semana: Vocês devem ter passado por lugares paradisíacos durante a viagem. Qual foi a paisagem mais bela de todo o percurso?
Pandiani: Difícil eleger somente um lugar, mas daria destaque para uma região no Caribe, as Exumas Islands, um enorme banco de coral que na parte interna, protegida da ondulação, tem piscinas de água transparente em tons de azul turquesa que eu nunca havia visto. Foram três dias navegando ao largo das barreiras de coral, inesquecível.

Guia da Semana: Qual a diferença entre navegar no oceano e nos rios? Quais os principais obstáculos de um e de outro?
Pandiani: É completamente diferente. O oceano é aberto e desprotegido. Você esta exposto e tem a ondulação, o vento que pode ser forte e muitos acidentes geográficos, como as pedras. Nos rios, o desafio era a falta de informação que tínhamos a respeito da região. Corredeiras, doenças, guerrilha das FARCS, a insegurança política da região, animais; estes foram alguns dos desafios vividos por nós na parte fluvial.

Guia da Semana: Quais as principais dificuldades encontradas pelo caminho? Houve algum imprevisto, algo que ficou fora do planejamento?
Pandiani: Quase tudo sai fora do planejamento em uma viagem como essa. Não só por ser a primeira, mas como a viagem foi muito longa e passou por regiões inóspitas e isoladas, a chance de algo sair exatamente como pensamos era difícil. O que vale é a capacidade de improvisação. No final, ficaram muitas boas lembranças e também muitos aprendizados. A parte da logística de abastecimento foi bem falha, o rodízio inicial de velejadores também não deu certo. Mas o incrível é que no final chegamos bem e dentro do prazo.

Guia da Semana: Vocês tiveram algum tipo de patrocínio? Como conseguiram?
Pandiani: Sim, foram vários os patrocinadores: Semp Toshiba, Amex, Natura, Nutrimental, Suzuki, DHL e Paparazzi. O segredo da venda é bem simples: oitenta visitas a empresas - no final consegue-se o objetivo por persistência.

Guia da Semana: Há quanto tempo você tem intimidade com as velas?
Pandiani: Comecei a velejar no final de 1982, em Ilhabela, em um Hobiecat 16. Logo depois comecei a competir e durante dez anos foi o que fiz na minha vida.

Guia da Semana: De que maneira essa experiência influenciou a sua vida?
Pandiani: Foi uma guinada enorme na minha vida. A partir do dia que comecei a navegar na Entre Trópicos tive a certeza que era o que eu mais queria fazer na minha vida. Nada me dá tanto prazer e realização. É como uma comunhão, uma integração com a natureza sem precedentes. O barco por ser pequeno é como uma extensão do meu corpo. Seria como vestir um traje que me permite viajar pelo mundo. Propositalmente pequeno, ele nos coloca em uma outra dimensão frente aos elementos. Com esta exposição máxima, posso dizer que só é possível viver assim no mar se você procurar entendê-lo e aceitar a vida rústica.

Guia da Semana: Quais são os seus projetos futuros?
Pandiani: Fazer a Passagem Noroeste no norte do Canadá. A passagem esteve fechada por causa do gelo. Em função do degelo, a cada ano fica mais fácil passar por lá, infelizmente!


Atualizado em 6 Set 2011.