Guia da Semana


Foto: Diego Dacax

Noite de sexta-feira, a última de fevereiro. A queda na temperatura e a garoa fina que vai e volta anunciam a proximidade do outono e lotam cinemas, cafés e outros locais que podem servir de abrigo para o quase frio que repentinamente tomou São Paulo. Apesar do clima aparentemente impróprio, centenas de pessoas sobre duas rodas se encontram na Praça do Ciclista, no cruzamento da avenida Paulista com a rua da Consolação. O aglomerado de gente e de bikes indica que é dia de Bicicletada, evento que desde 2002 acontece toda última sexta de cada mês na terra da garoa. Além da capital paulista, Portugal, Moçambique e mais de sessenta cidades brasileiras têm as suas Bicicletadas.

Inspirada na Critical Mass (Massa Crítica), que surgiu nos anos 90, em São Francisco, nos EUA, a Bicicletada vai além do que seria um simples passeio ciclístico. Ela é um movimento em prol da bicicleta como forma de mobilidade urbana não poluente e mais eficaz para o fluxo nas cidades contemporâneas. A primeira Bicicletada de São Paulo ocorreu em 2001, e remete aos protestos antiglobalização que aconteceram no início da década em algumas cidades mundo afora. Mas só no ano seguinte ela tomou corpo e passou a acontecer periodicamente.

No início, as pedaladas reuniam cerca de vinte pessoas, atualmente agregam em média trezentas. Até hoje elas reivindicam o espaço para as bicicletas nas ruas e contestam a lógica do trânsito que privilegia os automóveis em detrimento de outras formas de locomoção. Às vezes, o grupo realiza ações como as panfletagens, que têm por objetivo conscientizar os motoristas no que diz respeito ao lugar das magrelas no tráfego urbano.

Centenas de pessoas se reúnem na Praça do Ciclista

Foto: Diego Dacax

Sem líderes ou estatutos, cada Bicicletada tem uma característica, ora mais lúdica, às vezes mais política, mas sempre educativa e com um trajeto que é determinado na hora. Tudo de acordo com o que ficar decidido pelos participantes de cada encontro.

Em novembro do ano passado, dias após a inauguração do shopping Vila Olímpia, a Bicicletada do mês rumou para o estabelecimento. O motivo da visita foi o fato de o novo empreendimento, dirigido às classes A e B, não respeitar a lei municipal 14.266, que, entre outras coisas, obriga centros de compras e locais com grande fluxo de pessoas a oferecer estacionamento de bicicletas como parte de sua infraestrutura. Mesmo tendo sido inaugurado dois anos após a lei ter entrado em vigor, o shopping não tinha bicicletários - e até hoje não tem. "A gente decidiu ir até lá na hora, não foi uma ação planejada com antecedência", lembra Thiago Benicchio, co-autor do documentário Sociedade do Automóvel e responsável pelo blog Apocalipse Motorizado.

Em 2004, Benicchio teve contato com a Bicicletada por conta das pesquisas para o seu filme e a partir disso aderiu à bike como meio de transporte. "Tinha uns sete anos que eu não pedalava, achei que não ia dar conta de completar o percurso da primeira Bicicletada de que participei, mas foi tranquilo", lembra Benicchio. Logo no início de 2005, ele vendeu o carro e passou a se locomover exclusivamente sobre duas rodas.

Benicchio e seu meio de transporte

Foto: Diego Dacax

Se aquela Bicicletada que rumou ao shopping Vila Olímpia foi uma das mobilizações politizadas do grupo, pode-se dizer que a de fevereiro deste ano foi uma das lúdicas. Os ciclistas iniciaram uma pedalada que percorreu uns vinte quilômetros, passando por diversos pontos da região central da cidade, como o Viaduto do Chá, a Praça da Sé, a avenida Ipiranga e a região da estação da Luz. Alguns deles impróprios para uma pedalada solitária.

Novos caminhos

Em 27 de fevereiro, foi inaugurada a ciclovia da Marginal Pinheiros. Com cerca de 15 quilômetros de extensão, ela vai da estação de trem da Vila Olímpia até a Jurubatuba, no fim da avenida das Nações Unidas, sentido Interlagos. O trecho foi inaugurado sem iluminação e com horário restrito (das 6h às 18h). E há apenas dois acessos em todo o percurso, um em cada ponta, o que dificulta sua utilização como rota aos que usam a bicicleta como meio de transporte.

"Essa ciclovia vai de encontro às necessidades dos ciclistas, a gente precisa de vias compartilhadas entre os diferentes meios de transporte. Se o dinheiro gasto com essa obra fosse destinado à educação dos motoristas, talvez fosse um investimento melhor", avalia Marcelo Siqueira (foto).

A ciclovia está na contramão das ideias de Siqueira

Foto: Diego Dacax

Para Patrícia Iamamoto, apesar dessa ciclovia ser um avanço por parte do poder público em relação às bicicletas, uma medida mais eficiente para melhorar a vida de quem pedala na cidade seria a diminuição no limite de velocidade dos automóveis e a sinalização das vias com placas alertando os motoristas sobre a presença de ciclistas. "Isso custaria bem menos que uma ciclovia como essa da Marginal Pinheiros e seria melhor para a segurança de quem utiliza a bicicleta como meio de transporte", opina.

Em meio a tudo isso, pelo menos uma coisa é consenso: essa ciclovia evidencia que a bicicleta está na mira do poder público. E a Bicicletada, de certa forma, tem parte nesse aumento de visibilidade.

Seja como for, um dos aspectos mais interessantes desse movimento talvez seja o fato de que por onde ele passa a lógica do trânsito é de algum modo invertida. Por um tempo as bicicletas prevalecem sobre os automóveis, fazendo valer a legislação que estabelece que os veículos mais frágeis têm preferência nas ruas em relação aos maiores. É o triunfo momentâneo das bikes sobre os carros.


Atualizado em 6 Set 2011.