Guia da Semana

Foto: Sociedade Islâmica de Curitiba

Os afrescos caligráficos na parede e os arcos e ogivas da Mesquita Iman Ali, em Curitiba, representam fortes aspectos da arte mulçumana

Os bordões e ensinamentos de Tio Ali, personagem de Stenio Garcia em O Clone, novela das oito em reexibição nas tardes da Rede Globo, provam e confirmam: o mundo islâmico está na mídia, na cozinha, nas palavras que saem diariamente das nossas bocas. Assim como na primeira exibição do folhetim, referências dessa cultura voltam a ganhar popularidade entre jovens, adultos e idosos. Exposições como Islã, que alcançou público superior a 10 mil pessoas no CCBB - Rio entre os meses de setembro e dezembro do ano passado e que agora chega à unidade de São Paulo da instituição, e Miragens, que estreia em 10 de fevereiro no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, mostram o valor das produções culturais ligadas ao universo do Crescente Fértil

Devido a força do cristianismo no panteão religioso brasileiro, muitos desconhecem a influência da fé em Alah na cultura brasileira e algumas de suas marcas em importantes cidades do país.

Mas, antes de mergulhar nesse universo, algumas dúvidas comuns precisam ser sanadas para ninguém sair falando besteira. A começar pela diferença entre religião e grupo étnico. Mulçumano (ou islâmico, ou islamita) é quem comunga da fé do Islã, religião fundada por Muhammad (ou Maomé) no século VI, no Oriente Médio. A região é o berço do povo árabe, atualmente dividido em 22 países. Eles comungam de hábitos e língua iguais e/ou bem próximos, mas não de todo idênticos. A religião principal é a mulçumana, mas há minorias árabes cristãs e israelitas.

Arte e fé

O fato de o Alcorão (livro sagrados dos mulçumanos) proibir desenhos e esculturas de Deus (identificado como Alah) e dos profetas e de também não recomendar a reprodução de nenhuma forma humana nem animal possibilitou o forte desenvolvimento das formas artísticas não-figurativas. "Desenhos geométricos, motivos florais, vegetais e a caligrafia ganharam um importante impulso graças ao Islamismo", explica Paulo Farah, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).

Se a representação divina é condenada por medo da idolatria, a grandiosidade divina e religiosa é expressa na arquitetura. Abóbodas e arcos servem de sustento das edificações e também como demonstração de poder. Os motivos aparecem repetidas e intercaladas vezes nas paredes e portas de mesquitas, os templos dessa religião, bem como em casas, pátios, armas e tapeçarias. Outra marca das edificações mulçumanas é a presença de fontes d'água e árvores frutíferas em pátios internos, numa referência aos prazeres proporcionados pelo jardim do paraíso.

Foto: Divulgação

Uma edição do Corão com páginas douradas, obra do século XVII

Todos esses elementos fazem parte de Islã. A exposição traz mais de 300 obras datadas do século VIII ao início do XX, trazidas dos principais museus da Síria e do Irã, sejam peças históricas como afrescos de palácios até a renovação da arte caligráfica de Moafak Dib Hehel. Já a exposição Miragens, no Instituto Tomie Ohtake, foca a relação tradição-modernidade nas obras de 19 jovens artistas.

O Islã no Brasil

Das areias do Oriente, a fé de Maomé se espalhou pela Europa a partir das rotas comerciais e veio a florescer na Península Ibérica entre os séculos XIII e XV, período conhecido como Conquista Árabe ou Moura (mulçumanos do Norte da África). "Essa troca foi tão grande que possibilitou forte disseminação de conteúdo na língua em formação na península. Palavras como arroz, xerife, xarope, alfaiate e café entraram para o vocabulário, fazendo do árabe a terceira língua constitutiva do português" revela o professor.

Ainda no Brasil Colônia, muitos islâmicos chegaram como cristãos convertidos, professando o catolicismo por imposição da Igreja à época. Outra leva migratória veio com os navios negreiros do Norte da África, região onde o Islã rapidamente se multiplicou. Os escravos mulçumanos se diferenciavam por serem um grupo coeso e com alta formação intelectual, o que levou muitas vezes ao questionamento da exploração senhorial e a motins. A Revolta dos Malês, sublevação que colocou os negros no comando de Salvador por dois dias em janeiro de 1835, é a expresão mais conhecida dessa história.

Fechando o circuito, a terceira leva começou no final do século XIX, impulsionada por Dom Pedro II. Mulçumanos de diversas nacionalidades, como libaneses e sírios, trouxeram comidas típicas como o kibe, a esfiha, a salada tabule e a sobremesa malabi, o hábito de contar e ouvir histórias das mil e uma noites e degustar charutos e narguiles.

Foto: Acervo

Centros de comércio popular, como o Saara (foto), no Rio de Janeiro, e a 25 de março, em São Paulo, foram formados com o envolvimento das comunidades árabe e mulçumana

Atualmente, a comunidade mulçumana no Brasil conta com mais de 500 mil adeptos, que vão às mesquitas e musalas (pequenas salas de oração) para o exercício da fé e outras atividades. As maiores colônias estão nos estados de São Paulo e Paraná. Além das 25 mesquitas e mais de 50 musalas, as influências podem ser encontradas em prédios particulares nos centros das capitais, antigas zonas de comércio popular e construções com inspiração no estilo mourisco. Veja alguns locais destacados.

Rio de Janeiro

Mesquita do Rio de Janeiro
Gerenciada pela Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro, a mesquita se encontra em reforma. O Salão de orações está funcionando normalmente, recebendo os fiéis para as orações das sextas-feiras.

Palácio de Manguinhos
Construído em 12 de dezembro de 1907, o prédio foi desenhado no estilo neomourisco para abrigar o então Instituto de Patologia Experimental de Manguinhos. A construção, projeto do arquiteto português Luis Morais, conta com quatro abóbodas que destacam a edificação na Avenida Brasil.

Saara
Centro de compras aberto nos primeiros anos de década de 30, sua primeira ocupação foi de comerciantes libaneses e sírios com comércios de roupas, tecidos, fumos, entre outras mercadorias. Outro grande mérito do centro comercial foi a popularização do kibe e da esfiha como lanches na região central da cidade.

São Paulo

25 de março
Um dos maiores centros de comércio popular da América Latina, com mais de 500 lojas. Sua ocupação data dos anos 20, com comércios da comunidade árabe. Aos poucos, foi ganhando espaço e atraindo lojistas de outras comunidades, mas sem perder a referência dos antigos mascates originários do Oriente Médio.

Mesquita do Brasil
Localizada na Avenida do Estado, no bairro do Cambuci, é a primeira mesquita construída na América Latina, em 1929. Sua arquitetura é inspirada nas mesquitas de Damasco.

Mesquita de Santo Amaro
A última mesquita inaugurada na cidade, em 1987.

Curitiba

Mesquita Imam Ali ibn Abi Tálib

Templo religioso da comunidade muçulmana de Curitiba, foi inaugurada em 1972. Erguida no característico estilo arquitetônico islâmico, possui uma cúpula central, ladeada por duas torres - denominadas "minaretes" (do árabe "manar", ou "torre"). Na parte inferior, conta com escritórios, biblioteca e anfiteatro. Na parte de trás, possui belo jardim.

Salvador

Igreja da Lapinha
Em 1972, a capela localizada no tradicional bairro da cidade foi instituída como Paróquia, com traços góticos e coloniais, em devoção a Nossa Senhora da Conceição da Lapa. A estética do seu interior lembra uma mesquita. São as influências mouras deixando marcas na Liberdade desde as revoltas dos escravos mulçumanos dos séculos XVIII e XIX.

Atualizado em 6 Set 2011.