Guia da Semana

O sol permanece aceso sobre o estirão de estrada que adentra o Alto Acre e parece não ter fim. Estamos no quilômetro 290 em plena BR-317, e ainda falta um pouco para alcançar a borda do país. O sabor do amendoim e outras comidas, a cor do céu, o cheiro da terra, tudo parece diferente nessas terras.

Seriam notas de um El Dorado tropical? Não exatamente. Mas, também, não há sombra de uma terra arrasada pelo atraso ou afundada na miséria. É diferente, simplesmente por ser uma terra de fronteira.

A estrada, também conhecida como Rodovia Interoceanica, ainda não está totalmente concluída - faltam os últimos quilômetros ao norte de Rio Branco, com previsão de entrega até julho. No entanto, o principal trecho foi reinaugurado em 2006 e está em ótimas condições de rodagem, sem buracos e bem sinalizado, ligando com qualidade e segurança a região às peruanas Cuzco, Puerto Maldonado e Lima e às bolivianas Arequipa e La Paz, unindo Pacífico ao Atlântico numa sucessão de rodovias.

Do lado brasileiro, a zona de fronteira é formada por Assis Brasil, Brasiléia e Epitaciolândia, separadas pelo rio Acre de Iñapari, no Peru, e de Cobija, na Bolívia. Nesses recônditos entrecortados por asfalto e águas, as relações de tempo e, principalmente, de espaço são bem distintas tanto das capitais quanto das demais cidades de interior.

Os limites entrelaçados e a vocação de lugar de troca e passagem dão à zona de fronteira uma dinâmica mais agitada. Ao mesmo tempo, conservam um ritmo pacato, com conversa na praça e chamamento por alto-falantes para missas e cultos. A cor da pele local, uma mescla das etnias da região, é outro fator que contribui para a diversidade, compondo mil variações de rostos e de combinações de nomes e origens, com bolivianos dividindo espaço com crianças brasileiras com traços indígenas peruanos, caixas de supermercados caboclas e todo o tipo de gente. Ainda que cada um carregue o seu próprio sotaque, o portunhol congrega e comunica todos eles.

Agora, seja brasileiro, peruano ou boliviano, poucos são os interessados em falar quando os microfones estão ligados. Já sem o gravador, consegue-se tirar mais informações e até declarações fortes e verdadeiras. Essa introspecção típica não é de medo, mas uma desconfiança de quem sabe que nem tudo que se vê deve ser falado. Talvez as pontes justifiquem o comportamento. Afinal de contas, histórias, saudade e segredos são deixados de um lado, como se quisessem ser esquecidos quando se atravessa para o outro.

Contrastes latinos

Fotos: Bruno Cesar Dias

Rua de Iñapari, no Peru, cidade de fronteira com a acriana Assis Brasil

A presença militar e policial, com agentes da Polícia Federal e do Exército regulando os acessos são uma constante, sempre com duas barreiras, uma em cada país. Ligada pela ponte da integração Brasil-Peru, Iñapari e Assis Brasil não destoam muito de si. Passada a linha de fronteira e postos militares, apenas as cores da cidade peruana parecem um pouco mais vivas, mas a simplicidade é a mesma. Anda-se poucos metros e já aparecem os pontos dos toritos, triciclos adaptados com uma cabine, iguais aos tuc tucs indianos que funcionam como táxis em toda a região.

O estádio municipal parece mais um campo de várzea com mato alto e uma arquibancada e, no momento da visita, estava completamente vazio. O comércio é extremamente simples nessas duas cidades, bem mais que nas demais, com lojas ainda na lógica dos antigos armazéns que tem de tudo um pouco. No lado peruano, as bodegas, nome castelhano para bares, concentram os moradores nos momentos de reunião social. Já em Assis Brasil, duas igrejas evangélicas - uma batista e outra quadrangular - cumprem esse papel.

Se por terra há as barreiras, no rio Acre elas não existem, e é fácil ver moradores carregando grandes bagagens pela Praça do Marco Rondon. A praça é decorada com uma escultura de 1929 que leva a assinatura do militar de quando ele ainda era general e Brasil se escrevia com Z.

Menos de meia hora de carro e se está de volta a Brasiléia e Epitaciôlandia. Notadamente, a segunda é uma extensão da primeira e dela dependente. Tanto que sua ligação com a vizinha Cobija se dá ainda por uma antiga ponte de alvenaria.

Já Brasiléia recebeu a nova ponte da integração Brasil-Bolívia, batizada de Wilson Pinheiro, em 2006, ilustrando ainda mais os diferentes estágios de desenvolvimento das duas cidades. Junto com a inauguração, a cidade ganhou um novo mercado público e um mirante para o rio Acre justamente na região onde antigos donos dos seringais e as autoridades locais construíram suas casas, ocupadas hoje por lojas de artigos da floresta e de mercadorias variadas, ponto de informações turísticas, alguns bares e outros estabelecimentos. Em suas ruas convivem picapes de cabines estendidas, moto-taxis e bicicletas, o principal meio de transporte popular em toda a região.

Explorados e exploradores


Clima de Bye bye Brasil no centro de Brasiléia

É a boliviana Cobija a cidade mais desenvolvida. Um dos motivos é o fato de ser uma zona franca comercial, com produtos vendidos no câmbio do dólar. É comum para a população endinheirada de Rio Branco pegar a estrada e cruzar a fronteira para adquirir bebidas e artigos eletrônicos. Os brasileiros são liberados da fiscalização da Aduana em compras até R$ 300. Acima disso, uma parte fica com o Fisco.

Outro fator do desenvolvimento de Cobija é o fato de ser a capital de Pando e ainda manter uma certa relação de exploração com o território brazuca vizinho. Os bolivianos são os maiores exportadores de castanha para o mundo, seguidos por Brasil e Peru. Originária da área e popularizada como castanha do Pará devido ao porto de escoamento da produção extrativa, em Belém, atualmente todos, inclusive os vizinhos, vendem brazilian nuts para sofisticados restaurantes e mercados do primeiro mundo.

Tanta riqueza proveniente da mata tem atraído não apenas os moradores da fronteira. Atingidos por terremotos geológicos e políticos, haitianos vêm descendo da ilha natal pelo mar até alcançar a costa do Pacífico no Peru, e pelas matas, alcançam a região. Os bolivianos os expulsam de seus limites e eles migram para Brasiléia, que vem convivido com a nova população flutuante há cerca de um ano.

O contingente, formado na maioria por homens entre 20 e 40 anos, é tão grande que a prefeitura fez de uma escola e praça um verdadeiro campo de refugiados. O governo brasileiro oferece atendimento médico e assistencial, provendo-os de alimentação e novos documentos. Depois, em pequenos grupos, avançam território em direção às capitais amazônicas Rio Branco, Porto Velho (Rondônia), Belém (Pará) e Manaus (Amazonas). A população não vê com bons olhos a onda migratória, afirmando que a maioria chega infectada pelos vírus da Aids, da hepatite C e demais doenças infecto-contagiosas. Brasília já está atenta, e desde janeiro garante que medidas diplomáticas estão sendo tomadas, ciente de que o até então chamado fim do mundo tem se tornado de fato uma importante porta de entrada de culturas e todo o tipo de mercadoria, sem esperar o fim da Rota do Pacífico.


Atualizado em 6 Set 2011.