Guia da Semana

Foto: Getty Images


Minha música vem da
Música da poesia de um poeta João que
Não gosta de música

Minha poesia vem
Da poesia da música de um João músico que
Não gosta de poesia

(Caetano Veloso, "Outro Retrato")

Será que todos gostamos de música? Será que todos gostamos de poesia? Há exceções, é claro, mas se considerarmos que a maioria das pessoas sente prazer nesse espaço comum onde a música e a poesia se juntam e interdependem, criando um novo discurso e uma nova linguagem, as canções aparecem como um imenso território de fruição, e nesse território é possível detectar a identidade de muitas culturas. Dificilmente alguém deixará de encontrar no baú da memória uma canção de infância ou uma canção da adolescência com a qual se identificou, se emocionou, construiu fantasias ou marcou um momento que, com ela, passou a ser eterno na sua história.

Esta formação do repertório das canções em nossa memória acontece desde que nascemos, ao ouvir as vozes que nos ninam, mães e pais e avós que cantam e embalam (talvez ouçamos essas vozes antes de nascer...). Depois, em casa, na escola e no mundo das mídias esse repertório é cultivado, cresce e se desenha com variações, dependendo do que cada um desses espaços geradores decidir nos oferecer, enquanto dialogam - mesmo sem sempre saber e com resultados díspares - um com o outro.

Acontece que se esse repertório for só de escuta (mesmo que primogênio, formador) ele há de ocupar só uma parte do território possível a ser explorado na nossa relação com as canções, pois ainda faltaria... cantá-las!

É nesta ação ao mesmo tempo simples e complexa que um novo território se abre: cantar as canções, sermos agentes, fazer com que elas tenham nossa voz, passem através de nós, sejam geradas a cada vez por nossos próprios corpos cantantes para que possamos viver este momento de síntese, no qual a escuta ganha outra vida, corporiza-se, e assim podermos apreender os elementos da linguagem que se constroem e re-constroem manifestando-se como poesia, emoção, ritmo, melodia, harmonia, sentido... Neste momento sutilmente revelador, podemos apreender esses elementos, entender que as melodias têm extensão, que suas notas passeiam entre graves e agudos, que se desenham sobre ritmos que podem ser tocados, assobiados, entoados, que as palavras navegam sobre elas - e navegando gravam-se na memória.

Isso é também deliciosamente verdadeiro com as crianças: a experiência cantante começa a se desenvolver muitas vezes mesmo antes delas falarem, cantarolando vogais, sílabas, emitindo sons com a boca fechada, para depois - quando a fala começa a se desenhar - cantarem pedaços de frases, arremates, finais de refrões... Aos poucos reconhecem as identidades de melodias que se cantam no entorno, pedem para os adultos cantá-las, complementam, dançam, se manifestam. E, na medida em que crescem, suas memórias passam a registrar e a guardar melodias e letras inteiras que, às vezes, nós, adultos, nem conseguimos imaginar como é que conseguiram!

Afinados? Desafinados? Depende. Mas se não cantassem, se a prática não fizesse parte das suas vidas, esses seriam conceitos impossíveis de serem trabalhados. As "massinhas da percepção" e da ação seriam duras demais, e não haveria maneira de trabalhar a flexibilidade das suas formas. É na corporização de que falávamos acima que isso se dá. Na prática, e em movimento.

E assim, cantando, elas poderão, ao longo das suas vidas, achar instigantes caminhos de expressão e sentir prazer com a música que há na poesia, e a poesia que mora na música...


Quem é o colunista: Gustavo Kurlat

O que faz: músico, compositor, tradutor, locutor, autor, diretor, diretor musical de teatro e coordenador de música da Educação Infantil da Escola Viva e do Atelier Arte & Expressão.

Pecado gastronômico: a carne...

Melhor lugar de São Paulo: Praça Pôr do Sol.

Fale com ele: [email protected]

Atualizado em 6 Set 2011.