Guia da Semana

Foto: Gabriel Oliveira



Ator, escritor, diretor e excêntrico, José Celso Martinez Corrêa, ou simplesmente Zé Celso, dispensa apresentações cordiais. Pelo menos foi assim com o Guia da Semana. Com entrevista marcada no Teatro Oficina, o diretor surpreendeu e convidou os repórteres para o seu apartamento, na região da Avenida Paulista. Entre risadas e frases chocantes, Zé Celso fez um balanço de sua carreira e do Teatro Oficina, ícone da cultura brasileira.

Nasceu em 1937, em Araraquara, interior de São Paulo, se formou em direito, mas optou viver da arte. Esteve presente nos tempos áureos do teatro, teve sua peça Roda Viva invadida por militares na Ditadura, foi torturado e como ele mesmo afirma, "Estou cagando pra tudo isso".

Para comemorar os 50 anos do grupo Uzyna Uzona, fundado por ele, está à frente do espetáculo Os Bandidos, que segundo Zé é um grande resumo da história que o grupo passou nesses 50 anos, entre os temas abordados está a briga com o Grupo Silvio Santos, que mesmo depois de anos ainda tenta construir um shopping na região do teatro.

Foto: Marcus Oliveira



Guia da Semana: A peça Os Bandidos é uma tradução de Friedrich Schiller, mas ao mesmo tempo tem muita da história do Oficina, como é isso?
Zé Celso: A peça surgiu depois de 40 madrugadas bem vividas, revivendo uma peça de 200 anos atrás. Nela estão contidas todas as filosofias de Beethoven e Bach. É feita na época em que o teatro era para todas as classes sociais. É uma geração muito louca, muito livre. Movidos por uma paixão que transcende qualquer sentimento. Ela fala de uma corporação, onde nós adaptamos para a nossa vivência e o nosso objetivo é comer a corporação inteira. A peça traz muito o entusiasmo e como as novelas são um gênero muito popular, muito policiado pelo marketing, que estabelece a moral do bem do mal, do certo, essa novela é de verdade. É a vida nos seus momentos vividos na mais profunda intensidade. Mas na minha novela a gente toca em coisas que a novela da TV não pode mostrar. Fala de família, casamento, pais, mas de um jeito totalmente apaixonado, diabólico e divino até com pontos de Exú. Ou seja, a peça são 50 anos em 5 horas.

GDS: Qual é grande diferença do Usyna Uzona depois de 50 anos?
ZC: Existe uma intensidade maior que antigamente. Eu acho que nós vivemos em um período de muita desconstrução. Na época era bom também, teve o surgimento da Bossa Nova, Cinema Novo, Teatro Oficina, o país cresceu na democracia, foi uma série de coisas até o primeiro golpe. Logo depois veio o AI-5 e foi muito violento, época de repressão total, exílio. Eu sofri, eu fui torturado, mas eu to cagando pra isso. Eu resisti, eu sobrevivi a isso. Os atores mais sensacionais e com uma energia maravilhosa estavam na época de Roda Viva. Mas a oportunidade de retorno foi maravilhosa. Tivemos uma vida subterrânea maravilhosa, uma clandestinidade, o exílio. Foi sempre vivido com uma coisa que o teatro dá que é uma situação de você poder criar dentro dela, ela não pode te destruir, então você vai pegando o veneno e vai ficando imune e virando o remédio. Eu não sou de resistência, muito pelo contrário, a gente tem que ser irresistível sempre. Deve sempre resistir a cada obstáculo que aparece. Você tem que inventar tudo de novo a cada momento e a cada instante.

GDS: Suas peças têm um conteúdo erótico muito forte. O que é erotismo pra você?
ZC: É a alma, é a eletricidade, é o tesão, uma coisa que você mede com um aparelho. É vida, é a mesma coisa que dá na música, na arte, uma pessoa que não cultiva o tesão, não tem talento para ser artista. Nossas peças são muito eróticas, damos um valor enorme para isso, existem cenas lindas em que o Papa é enrabado por uma hermafrodita. Eu tenho planos de criar uma faculdade antropófaga onde haja um bordel. Onde tenha iniciação sexual, porque educação sexual não quer dizer só que tem que usar camisinha, é muito mais. Tem toda uma filosofia tântrica e entre outras coisas muito diferentes do papai e mamãe ou aquelas perversões baratas e aquele amor meio sem erotismo. Erotismo é tudo, é a alma da vida. Sexo sem erotismo não é nada.

GDS: Muita gente se choca com as cenas de sexo nas suas peças. Como encara isso?
ZC: Eu adoro, eu adoro sacanagem. Eu dou uma importância muito grande ao amor, todas as formas de amor e a pornografia também, que significa grafia das putas. As putas e os putos antigamente ensinavam o povo a viver. Na peça, inclusive, nós brincamos com isso, mexemos com todos os tabus... e o que eu tava falando mesmo? (Alguém lembra o Zé ao fundo).
Ah sim, inclusive a gente não pode ter medo de Eros, a gente tem que cultuar porque a gente vem disso. Claro que inventam muitas coisas, como o casamento, que tem que assinar papel, viver eternamente, só pode transar pra ter filho, mas tudo isso já era. A igreja insiste, mas cada vez mais o mundo descobre o corpo e o teatro também. O teatro é uma forma de culto ao corpo. Tem que rolar uma putaria.

GDS:Você não acha meio hipócrita a sociedade que assiste às suas peças e fica chocada e logo em seguida sai e vê a era do funk?
ZC: Claro. É que o teatro ficou considerado um lugar de moral. As pessoas iam ao teatro para serem educadas, se instrumentalizar. Mas os teatros gregos sempre foram a favor do amor. Amor erótico gostoso que dá prazer. Por exemplo, eu tenho muito respeito pelas prostitutas que têm relaçõe sexuais com qualquer um, eu tiro o chapéu. Porque a pessoa tem a capacidade de dar amor e fazer uma performance, porque na verdade o amor é uma performance.

GDS: Como é manter a chama do Oficina acesa durante tanto tempo?
ZC: Tesão (risos). Acordar e dizer, to vivo. Outro dia me perguntaram qual é a palavra que eu mais falo, e eu respondi: orgia, e a que eu mais escuto: é não. É essa luta entre sim e não.

GDS: Como é lidar com a vida de artista, ator?
ZC: É uma delícia, não existe vida melhor. Custa caro, é difícil, você pena, mas eu não troco por vida nenhuma. Se eu tivesse que fazer tudo de novo, eu faria.

Foto: Gabriel Oliveira



GDS: Você fez faculdade de direito. Chegou a exercer a função?
ZC: Fiz e usei, exerci a favor da arte.

GDS: Você sempre escutou muito não, foi reprimido e perseguido. Em momento nenhum você teve vontade de largar tudo?
ZC: Não, nunca. Tiveram épocas em que eu não podia fazer porque a polícia e a censura não deixavam. Me prenderam, me torturaram, tive que mudar para ouro país, mas tudo bem.

GDS: Você sofreu muito com essa punição por parte dos patrocinadores?
ZC: Sempre, eles não investem porque não querem vincular suas marcas a nossa imagem. É um jogo muito louco e dificílimo. Pagamos um preço alto por isso. Olha o meu apartamento, por exemplo, eu não tenho nada, mas não me arrependo. Eu quero ganhar mais dinheiro, eu gostaria de ser rico. Eu quero ser rico sem deixar de ser eu mesmo, sem abdicar do que eu sou. Você já imaginou um Gianecchini pousando nu? Não pode, ele mesmo não se permite. Para fazer sucesso nesse esquema você tem que se castrar.

GDS: Como você imagina o Teatro Oficina daqui a 50 anos?
ZC: Eu não imagino. Eu imagino isso aqui agora. Estou cultivando tudo que aprendi com Cacilda (Becker), Oswald (de Andrade), Shakespeare. Nós todos aqui queremos muito mais do que celebridade, nós queremos a imortalidade, deixar um vestígio profundo nas pessoas, tatuar nossa marca. Chegar ao amor pelas espécies. Antes da celebridade quero a eternidade.

GDS: Como você gostaria de ser lembrado?
ZC: Eu não quero ser lembrado! Eu quero é ser comido. Eu quero inclusive que quando eu morrer me façam de picadinho e joguem em uma montanha e uma porção de urubus me comam. Eu adoro urubu. Sou antropófago.

Curiosidades Sobre o Teatro Oficina
? Foi Fundado em 1958 por um grupo de estudantes da Escola de Direito do Largo São Francisco;

? Foi no Teatro Oficina, na década de 60, que foi lançado o movimento cultural conhecido por Tropicalismo;

? A montagem Os Sertões, de Euclides da Cunha, é dividida em três partes, somando mais de 25 horas de apresentação. A peça foi apresentada em Berlim, na Alemanha;

? O novo Oficina foi projetado pela arquiteta Lina Bo Bardi, a mesma que projetou o MASP (Museu de Arte de São Paulo) e o Sesc Pompéia. A arquitetura do teatro foi vencedora da Bienal de Praga, em 1999.

Atualizado em 1 Dez 2011.