Guia da Semana

Foto: Divulgação

Em "A Cabra ou Quem é Sylvia?", questões tão humanas como traição, infidelidade, preconceito e a própria natureza do amor, são colocadas em xeque e trazidas à luz, num texto que beira o absurdo. O texto, de autoria do dramaturgo Edward Albee, adaptado e dirigido por Jô Soares, em cartaz no Teatro dos Quatro, no Rio de Janeiro, após temporada de sucesso em São Paulo, propõe uma discussão sobre os limites da tolerância, sobre aquilo que nos permitimos pensar.

Seguindo a premissa de que a condição do teatro deve ser o de mudar nossa percepção sobre o mundo e a realidade, senão incorremos no erro de aceitar que sua função é meramente decorativa, Albee constrói um texto de grande contribuição à dramaturgia norte-americana. O próprio autor define a peça como "um ostensivo desafio à moral conservadora" e traz a essência de seu próprio desconforto.

A peça gira em torno da relação de um casal como tantos outros. Martin (José Wilker) é um arquiteto de prestígio, que acaba de ganhar o prêmio Pritzker, possui um casamento feliz com Stella (Denise Del Vecchio) e um filho adolescente homossexual (Gustavo Machado). Trata-se de uma família de intelectuais liberais que se divertem com diálogos brilhantes, réplicas sagazes e piadinhas cúmplices. Mas este casamento perfeito, esta vida invejável é abalada por um fato inesperado.

Tudo começa quando Martin confessa a um amigo que está completamente apaixonado por Sylvia, após conhecê-la durante uma temporada no campo. Esta poderia ser mais uma história de uma relação ameaçada por um novo amor, se não fosse um detalhe fundamental: Sylvia é uma cabra!

A partir daí, o absurdo do universo de Albee se instala em cena desmascarando o conceito de "lar feliz" e sua suposta normalidade. Mais do que, apenas discutir os conceitos morais e tratar de assuntos como infidelidade e traição, o texto trata a forma como lidamos com nossos níveis de tolerância quando alguém se desvia do que é socialmente aceito. A revelação da paixão de Martin por uma cabra põe em xeque a própria estrutura da sociedade, ultrapassando a realidade do casal. Não é raro que as discussões do casal Martin e Stella nos remetam a "Quem tem medo de Virgínia Woolf", uma das grandes peças do dramaturgo.

A química entre José Wilker e Denise Del Vecchio garante o tom certo aos personagens idealizados pelo autor. Denise está ótima na pele da intelectual Stella que se percebe não tão liberal frente ao absurdo do amor de Martin, vivido por Wilker, em esplêndida atuação. No palco, a atriz mostra sua força de veterana e garante as melhores cenas do espetáculo numa jornada rumo à irracionalidade.


O cenário, a sala de estar do casal, idealizado por Isay Weinfeld - indicado ao Shell em 2005 pelo excelente Baque - é econômico, simples e agradável com poucos objetos cênicos. A destruição do cenário durante o acesso de fúria de Stella traz uma leitura belíssima e simbólica da destruição dos alicerces daquela família, da casa e da própria sociedade.


O figurino de Lu Pimenta é contemporâneo e está de acordo com a proposta. A luz de Telma Fernandes e a trilha sonora de Duda Queiroz completam a ficha técnica.

Os assuntos abordados e discutidos pela montagem, só se tornam palatáveis, graças às doses de humor inseridas no contexto, enquanto a adaptação de Jô Soares dá um certo tom coloquial ao texto. Mesmo assim, em alguns momentos, fica impossível conter o riso nervoso.


Enfim, "A Cabra" é um Albee desconfortável, cínico e acima de qualquer conceito de moralidade e, por isso mesmo, um texto de grande genialidade.


Leia as colunas anteriores de Celso Pontara:

Um café, dois estrangeiros e um autor

O Relógio de Paulo Autran

A Vida é Quase um Sonho

Quem é o colunista: Celso Pontara.

O que faz: Paulista, radicado no Rio, Celso Pontara é uma mistura de ator, dramaturgo e produtor cultural.

Pecado gastronômico: Bolo Negro e Tiramissú de Chaika.

Melhor lugar do Brasil: Paraty.

Fale com ele: capontara @uol.com.br ou acesse seu site


Atualizado em 10 Abr 2012.