Guia da Semana

Foto: AFP

Impossível não falar sobre futebol. Todos os canais de televisão, as emissoras de rádio, vizinhos e amigos tratam de me lembrar que a Copa do Mundo ainda não terminou. Ao menos, não enquanto escrevo... O constrangimento ao final da patética partida que mandou para casa os jogadores brasileiros, hoje se funde a uma ressurreição patriótica com também a despedida dos hermanos argentinos. Só que esta resenha não se trata dessa síndrome de vingança tardia. Esta coluna foca o olhar sobre a Cultura e, ainda que os jogos resistam, tentarei me ater a sua função.

Mas e a seleção, hein? Como subtrair a vergonha plantada? O que assistimos não foi a derrota, explicitou-se o óbvio de algo que nos preenche princípios e subjetividades. Somos, tanto quanto os atletas que enviamos, igualmente passivos, desinteressados, preguiçosos. Algo, em algum momento na formação de nossa identidade, foi "macunaimizado" e, ao que parece, o balançar da rede, onde nos acomodamos ao sabor dos ventos tropicais, penetrou nossa existência de modo definitivo. A ausente vontade de se colocar e existir diretamente é menos uma caricatura literária, portanto. É arquetípica, cultural e indissociável daquilo que nos constitui brasileiro, seja lá o que isso for.

Culpar e desculpar são atalhos preguiçosos para fugirmos do espelho sobre nossas faces relaxadas e ausentes. Não nos entregamos a nenhuma espécie de desejo que não seja fútil e lúdico. Não nos importamos com a política local, não nos atemos aos valores, não nos arrependemos em destruir qualquer contexto ético. Nossas obrigações morais são sutilmente esquecidas, veladas por jeitosas atitudes condenáveis em origem, mas valentes em espertezas. Assim somos nós, brasileiros. Culturalmente medíocres em nossas responsabilidades e historicamente sortudos em sermos mais aos outros do que realmente somos entre nós, ainda que em aparências.

Querer que nossos jogadores agissem com responsabilidade frente a seus compromissos e que a derrota, ao vir, chegasse respeitosa e digna, é exigir que não fossem brasileiros.

O fato das nossas atitudes revelarem indisposição ao ético e ao construtivo desencadeia consequências insolúveis na maneira como o produto cultural resultante de ações verdadeiramente responsáveis se encontra submetido às deturpações do mercado e mesmo do próprio consumidor. Perceba não tratar aqui a problemática da arte sobreviver condicionada a sua produtificação, mas, e apenas mas, à banalização ideológica de sua função.

Exemplos de como o microcosmo do futebol pode explicitar o todo, são as reações às derrotas francesa e americana.

A saída vergonhosa da equipe francesa da competição expôs ainda mais as feridas do racismo e preconceito do país em níveis muito mais profundos. A direita extremista culpa a origem pobre e o imigrante pela falta óbvia de hierarquia e respeito que acometeu atletas e comissão técnica. Estaria na incapacidade das culturais originais daqueles que abrigam as periferias parisienses à baixa propensão ao correto. Dizem os extremistas que, além de inferiores, são os descendentes de imigrantes incapazes de alcançar os valores europeus que tanto se perdem na construção da sociedade contemporânea francesa. E, enquanto a mídia se aproveita para colocar fogo na discussão pelo mero prazer em aumentar seus lucros (em níveis diversos de ganho), o Governo, em camadas perigosas de participação política, descobre os percursos certos para trilhar os labirintos legislativo e jurídico que levarão não a uma saída, mas à aceitação de intervenções sobre aquilo que, por princípio, deveria ser livre e inspirador.

Também os americanos se digladiam enquanto a direita acusa a Europa de interferir na constituição do seu ideário. Em programas de rádio e televisão, a Copa do Mundo se transformara em deturpações ideológicas de preconceito contra os pobres, negros, latinos e europeus. Argumentando que o futebol é uma ideologia de esquerda imposta às escolas para classe baixa e que a Europa já deu muita coisa ao mundo, como duas guerras mundiais, o nazismo e a peste bubônica, personalidades de direita assumem seu radicalismo contra a política de Barack Obama metaforizando que a perda da identidade cultural no esporte americano é semelhante ao sócio-político consequente à mestiçagem do branco com o negro, trazendo alienação, massificação e idealização da pobreza como proposições positivas ao desenvolvimento humano.

Parece forçar um pouco a situação falarmos sobre tudo isso, mas o que se vê, ao fundo, é um amplo favorecimento ao debate público, ainda que os incentivos aos debates sejam deturpações das piores possíveis. Ao se colocarem publicamente como proposições ideológicas, as ideias de ambas as direitas (francesa e americana) se jogam ao fogo da discussão comparativa sobre suas filosofias e morais, exigindo que setores diversos da sociedade contraponham os argumentos, traduzindo, portanto, a estupidez em debate a todos.

Por aqui, nada mais é dito, a não ser que 2014 está logo aí. Muito se conversa sobre a culpa e os verdadeiros merecedores de desculpas, como escrevi antes. A alienação submete o contexto à simplicidade de uma competição. Percepção correta, à princípio, de ser uma competição apenas isso mesmo, não fosse o ocorrido sobre os gramados africanos a perfeita exposição de como nos postamos nação.

Retornando aos valores culturais, os absurdos que polemizaram os dias recentes nos dois outros países, da mídia mais sensacionalistas aos intelectuais mais respeitados, explicita igualmente a participação do indivíduo sobre a formatação de suas culturas. E o que parece gratuito se revela igualmente potência quando entendemos as violências das atitudes sobre a percepção e importância do produto cultural e a responsabilidade na escolha do consumo. Isso não quer dizer que não há produtos meramente comerciais, tampouco que não são esses os mais consumidos e em maior número, mas que à existência desses há a contramão das manifestações responsáveis e conscientes, tanto quanto de um consumidor que busca transformação ao invés de entretenimento.

Estamos muito longe disso. Não olhamos para nosso umbigo, guardado como está por tecidos importados de qualidade inferior. Vestimos a necessidade do momento, o produto do instante, desapegados que somos de qualquer responsabilidade na construção de um amanhã mais eficiente e produtivo a todos. Querer mudar se tornou estereotipo de bandeira de esquerdismo populista, que nada mais possui de ambos os preceitos. Nossa esquerda se consolidou por um assistencialismo manipulador, enquanto o indivíduo espera ser atendido em suas necessidades mais básicas, desapropriando de sua realidade a conquista e o desenvolvimento, e o populismo se valoriza, quase sempre, em atitudes de cunho cultural cujo produto oferecido nada possui em qualidade de modificação do sujeito ou de inclusão de inquietações.

Ficamos assim, então. Fora da Copa e distantes de nós, enquanto aguardamos o apito para a próxima partida. Ainda que esta esteja com o placar vendido, se, aparentemente, o resultado puder, ao menos, nos levar ao sorriso satisfeito da diversão, então se prova válido. A mediocridade do silêncio sobre si mesmo do brasileiro se resumiu à passividade em campo de estrelas sem brilho. O bom é que logo deve começar outra novela na televisão, e tudo, então, poderá voltar ao normal, ao lado de discursos artísticos que se enterram em solidão tanto quanto os jovens craques e as promessas futuras se perceberam subtraídos de reconhecimento.

Leias as colunas anteriores de Ruy Filho:

Espelhos no Escuro

Duas vezes Antunes

Mistura de Estilos

Quem é o colunista: Ruy Filho.

O que faz: Diretor e dramaturgo.

Pecado gastronômico: Carpaccio de pato do Piselli.


Melhor lugar do Brasil: Salvador fora de temporada.


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Atualizado em 6 Set 2011.