Guia da Semana

Foto: André Mestre


A temporada 2011 da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) nos traz uma novidade interessante: o conceito de compositor transversal - aquele que é homenageado com uma quantidade expressiva de trabalhos executados durante o ano. Eleito dentre gigantes, o estoniano Arvo Pärt me parece uma escolha inspirada, de forma que, nesta minha primeira coluna sobre música, resolvi falar um pouco sobre ele.

Pärt nos é contemporâneo; nascido em 1935, é um verdadeiro filho do século 20: vivenciou guerra, regimes militares, modernismo, pós-modernismo, clonagem e terrorismo. Digo isso por que é comum termos a figura do compositor de música erudita como algo bastante distante. Não é o caso, ele é legitimamente atual. Sua música reage e responde aos eventos citados, não de maneira retórica ou como manifesto, mas, simplesmente, por existir de forma concomitante, como alternativa.

Para aqueles que são chegados em história e contexto, a vida de Pärt não decepciona. Até a década de 60 ele produziu, sob os desconfiados olhares soviéticos, obras de natureza serial (composição através de séries de notas, culminância do dodecafonismo) - e religiosa, que foi sua grande motivação artística e que permeou toda a sua vida. Aparentemente nascido de um atrito entre essas duas latentes características de sua música, segue-se à peça Credo (1968) um enorme hiato criativo de sete anos, no qual, em profunda crise estética, ele escreve virtualmente nada.

Nesse período de silêncio e estudo, Pärt mergulha em profundidade na polifonia (a técnica de condução de melodias simultâneas) medieval e renascentista; desenvolve-se nele uma obsessão pela estrutura mais simples da tonalidade: a tríade. O resultado é uma singela peça para piano de 76 intitulada Für Alina, peça essa que marca a criação de sua nova técnica composicional, o tintinnabuli (do latim "sinos"). De fato, a escuta da peça nos revela essa exata impressão, do piano transformado em um imenso carrilhão onde sinos gentilmente tilintam (do italiano "tintinnano"). Für Alina é chocante; ela é resultado da subtração de tudo que Pärt julgou como supérfluo e confuso em sua música: restam algumas poucas notas, sem orientação de ritmo e que se movem sempre juntas. Impulsionado pela técnica que criara, o compositor volta a escrever peças como Fratres, Tabula Rasa (ambas de 1977) e De Profundis (1980), que marcam esse período de retomada.

A crítica, dividida, pouco compreendia. Alguns julgavam que Pärt enlouquecera, tamanha a simplicidade dos novos trabalhos do antes vanguardista compositor. Uma coisa era certa: o governo soviético não apreciava o teor religioso de sua obra, de forma que ele parte para a Áustria em 1980, tendo se estabelecido na Alemanha posteriormente.

Paradoxalmente, de lá para cá, a busca pela unidade artística (um daqules ideais fugidios) levou o compositor estoniano a uma vasta produção que atesta pela fertilidade do que descobrira em Für Alina. A humildade de seus processos - sempre cristalinos - e a sobriedade do material, umas poucas notas, são inquietantes ao ouvinte envolto no caos moderno; ouve-se uma beleza que existe em detrimento de floreios e que nos leva a imaginar o quanto nós mesmos não poderíamos abandonar sem que perdêssemos em nada - é isso que me dói e é isso que vejo doer nos outros ao som de Arvo Pärt.

Vale a pena buscar o trabalho desse compositor. O acesso é fácil - boa parte dele se encontra em sites como o Youtube. Minha única recomendação é a mesma de meu poeta favorito, Hakim Sana`i em seu livro El Hadiqa: "Ouça verdadeiramente: Todos esses tons tornam-se uma só cor no jarro da Unidade".

Outras obras de Arvo Pärt: Passio (1982); Magnificat (1989); Summa (1977); I Am The True Vine (1996); Mein Weg (1999); Da Pacem Domine (2004) e Sinfonia nº4 (2008).

Este ano, a Osesp nos presenteia com belas performances de suas mais significativas obras, corais e instrumentais. Ingressos podem (e devem!) ser comprados com antecedência diretamente no site da orquestra, onde há também toda a programação da temporada disponível.

Quem é o colunista: André Mestre.

O que faz: Música, sou compositor..

Pecado gastronômico: Pizza e... café com sorvete?

Melhor lugar do mundo: Rua Gustavo Teixeira.

O que está ouvindo no carro, iPod, mp3: Uma miscelânea meio esquizofrênica que invariavelmente passa por: Arvo Pärt, Duduk, Pain of Salvation, Pascal Dusapin, Tuwa [www.myspace.com/grupotuwa], Jonathan Harvey, Eva Cassidy e, claro, Mozart.

Para falar com ele: andrermestre@yahoo.com.br ou visite seu site (www.wix.com/andrermestre/art).




Atualizado em 1 Dez 2011.