Guia da Semana

Por Flávia Faccini

Doca: 30 anos depois, a versão do autor

Doca Street viveu plenamente a Juventude Transviada : eram os anos de chumbo da ditadura no Brasil, mas o seu dia-a-dia girava em torno de sexo, champagne e cocaína. Tal como o personagem de James Dean no filme, a chegada de uma mulher acabou modificando radicalmente o rumo da sua vida.

Filho de um funcionário da Legião Brasileira de Assistência e de uma costureira do high society, Doca, apelido de Raul Fernando do Amaral Street, era casado com a milionária Adelita Scarpa quando se tornou amante da socialite mineira Ângela Diniz, conhecida como a Pantera de Minas. Ângela mantinha um relacionamento com o jornalista Ibrahim Sued. Em 1976, após um comentado romance, o casal foi viver junto no Rio de Janeiro.

Às vésperas do Réveillon, em uma das inúmeras brigas do casal em Búzios, Doca deu quatro tiros no rosto de Ângela. "Se quiser me dividir com homens e mulheres... Pode ficar, seu corno!" teriam sido as últimas palavras da vítima, segundo ele.

Entre 1979 e 1981, foi julgado duas vezes. Nunca negou a autoria do crime. No primeiro julgamento, defendido pelo advogado Evandro Lins e Silva, saiu livre e ovacionado do tribunal. A base de sua defesa era a legítima defesa da honra, escorada na desconstituição da imagem de Ângela, apontada como "uma mulher que vivia na horizontal".

Quando questionado sobre como se sentiu ao ver a reputação de Ângela enlameada, reflete um pouco, mas acaba afirmando. "O Evandro me disse: eu não tenho a menor possibilidade de te defender se eu não lutar com as mesmas armas da promotoria. Ele não contou mentiras: falou sobre o passado dela, as prisões, coisas que realmente tinham acontecido".

O promotor responsável recorreu e aliado aos movimentos feministas, que fizeram grande pressão com o lançamento da campanha Quem Ama Não Mata, Doca Street foi novamente levado a julgamento, em novembro de 1981. Foi condenado a 15 anos de prisão, dos quais três anos e meio foram cumpridos em regime fechado.

A tragédia é reavivada agora pelo seu principal personagem com o lançamento do livro Mea Culpa. Com o subtítulo de O depoimento que rompe 30 anos de silêncio, o autor passa a limpo o período mais tumultuado da sua vida, do primeiro trimestre de 1976, quando tem início seu caso com Ângela, a outubro de 1987.

Segundo ele, a idéia de publicar os manuscritos, iniciados no presídio da Água Santa, em 1977, veio de seu filho, Raul Street, gerente de um hotel em Itacaré, na Bahia. "Queria publicar primeiro para ter oportunidade de dizer para a imprensa daquela época e para a promotoria a minha versão do caso e também porque o meu filho achava que eu devia limpar o meu nome, dizer que eu não era um traficante, um gigolô.", comenta.

Em entrevista recente, a filha de Ângela, Cristina Vilas Boas, protestou contra o lançamento do livro, que segundo ela, assassina novamente a reputação da mãe. Doca rebate: "Você me viu falar mal da Ângela? Eu conto um passado de drogas sim, mas dela e meu. Eu seria incapaz de fazer isso para denegri-la, hoje em dia se usa muito mais droga do que antigamente."

Depois da prisão: vida pacata e emprego em factoring

Ainda segundo ele, a decisão de lançar o livro não foi motivada por interesses financeiros. "Se o livro der lucro, pretendo ajudar os filhos das pessoas que estão presas e aqueles que saem da prisão sem qualquer perspectiva de vida, sem uma família e sem ter para onde ir. Até sair da cadeia eu não levei nada a sério, não vi o Brasil e não fiz nada a respeito disso", comenta.

Embora o crime tenha tido grande repercussão na mídia e a história seja bastante conhecida, a obra traz detalhes sobre a vida na prisão e o relacionamento do casal, que não economizava na bebida, na cocaína e em episódios escandalosos.

Mea Culpa

"Encontrei Ângela e tirei-a para dançar. Saímos dançando e brincando, a Núria [prima de Ângela] ouviu a música e veio para o corredor. Foi puxada para dançar conosco e acabou no meio de nós dois, de costas para mim. Estávamos loucos de excitação. Ângela fez ela se virar e me beijar, fomos para o quarto e transamos." (p. 258)



Aos 72 anos, Doca Street não é mais o farrista envolvido em uma sucessão de episódios regados a Veuve Clicquot, cocaína e sexo, mas guarda hábitos e atitudes de uma época que não volta mais.

Ele chega para a entrevista ao Guia da Semana vestido com elegância, carregando no dedo mínimo um anel com o brasão da família. Quando estendo a mão para cumprimentá-lo, imediatamente ele a beija. Não perdeu o ar galante que conquistou diversas fãs mesmo enquanto esteve preso.

Casou-se novamente com uma amiga de infância, Marilena Street, e mora em um apartamento em Pinheiros. Trabalha em uma factoring e negocia automóveis. Agnóstico, tornou-se um homem caseiro, avesso às badalações. Largou a cocaína, bebe socialmente e fuma ocasionalmente.

Tem o riso fácil e os olhos atentos, a procura de alguma armadilha escondida nas perguntas. Dois assuntos o deixam agitado: o episódio do programa Linha Direta, da Rede Globo, cuja veiculação tentou impedir sem sucesso, "O programa é uma palhaçada, não foi daquela forma" , e a pergunta sobre se considerar um homem violento. "Eu nunca fui violento, era ciumento, tanto que me relaciono bem com minhas duas ex-esposas, a ponto de resolver problemas delas".

Mea Culpa

"De repente reparei que Ângela estava olhando para um homem, que, por sua vez, estava tão encantado que dava a maior bandeira. Levantava o copo para ela, e mandou o garçom entregar-lhe um cartão. Assim que ela o recebeu, o camarada foi direto para o banheiro. Ângela adorava provocar. Levantou-se e foi na mesma direção. Meu pavio encurtou: segui-a até o toalete das mulheres, empurrei-a para dentro e depois para um dos reservados. Não disse nada, só a sacudi pelos ombros, tanto e com tanta força que a cabeça dela ia para a frente e para trás. Depois de alguns segundos não agüentou mais e seu corpo amoleceu. " (p. 101)



Doca se emociona e chora quando relembra a morte de Ângela. "Dói falar sobre isso, doeu escrever, eu chorei muito. Pensar na Ângela me faz sofrer muito, eu gostava muito dela e perdi a cabeça completamente, machuca muito, magoa muito.". Outra referência delicada é a família da socialite. "Escrever pensando que há a família do lado de lá, remexer nisso dói muito, mas acho necessário esclarecer".

Não deve mais nada a justiça, mas faz um longo silêncio quando pergunto se agora está em paz com sua consciência. "Eu não vou ficar em paz nunca, eu não gosto de falar, porque eu fico tão louco comigo mesmo, como é que eu vou ficar em paz?" , conta emocionado.

Doca não está em paz. "Não me queira mal" , diz ao final da entrevista. Livre ou preso, continua pagando.

Atualizado em 6 Set 2011.