Guia da Semana

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No último mês assisti duas vezes Antunes Filho. Ou melhor, dois espetáculos dele. O primeiro, o diretor já há tanto conhecido e acompanhado; o segundo, o dramaturgo e seu primeiro texto. E o que encontrei foi uma distância histórica e estética gigantesca entre os dois. Enquanto A Falecida Vapt-Vupt traz o diretor inquieto a qual estamos acostumados, Lamartine Babo apresenta um dramaturgo envelhecido e ortodoxo.

O musical dramático construído por Antunes Filho a partir de músicas compostas por Lamartine Babo apresenta uma estrutura realista antiquada. No desenvolvimento da trama pequenos escorregões explicitam a inexperiência do diretor como autor. Não basta ler e estudar dramaturgia. Escrever é mais complexo e implica em desdobrar o olhar a partir de parâmetros diferentes da construção da cena. É necessário chafurdar na literatura, nas palavras e entrelinhas para daí atribuir um sentido maior do que meras metáforas ou acontecimentos.

Soa estranho ao espectador o momento em que, julgando o personagem central, uma das atrizes desconfia categoricamente de seus conhecimentos por ele "não participar de cursos, não ler livros, nem receber cartas". Parece um detalhe, mas daí surge um desafio que desestruturará o personagem central, levando ao desfecho do espetáculo. A questão, contudo, é que em nenhum momento o personagem afirma não receber cartas. De onde poderia, então, vir a conclusão se não do conhecimento próprio do dramaturgo.

Outro exemplo de caso semelhante é a explosão do personagem após escutar marchinhas de outros compositores que não Lamartine. Aos gritos, afirma ter sido traído por aqueles que prometeram tocar apenas Lamartine Babo durante o show. Novamente a informação existe apenas nos argumentos do dramaturgo. Em nenhum momento fora dito que o ensaio era pra um show específico, apenas que tocariam Lamartine. Mas há uma grande distância em "também" e "apenas", o que não justificaria, enfim, a explosão ocorrida.

A questão maior está na perspectiva comum da construção narrativa. Antunes escorrega onde muitos principiantes também tropeçam: nos detalhes aparentemente ínfimos, porém fundamentais. E essa é a dificuldade da escrita dramática, manter o equilíbrio entre o dito, o escondido, o sugerido e o metaforizado. Lamartine Babo se revela, ao fim, um espetáculo careta em estrutura, em poética, em metáforas. Não é de fato um bom começo pra um artista que já renovou o teatro nacional algumas vezes.

A frase comum pelos corredores do Sesc Consolação era "eles podiam ter chamado o público para dançar e cantar". Vencera, portanto, a música de Lamartine, enquanto o teatro serviu apenas de figuração para sua manifestação. E compreender o teatro como instrumento de possibilidade a algo é fragmentá-lo, induzindo-o a um discurso solitário e distante da complexidade contemporânea.

Já em A Falecida Vapt-Vupt, o diretor traz uma inquietação interessante como se espera de sua assinatura. A opção por aproximar a cena à vídeo-arte é inquietante e um enorme desafio. Sobretudo porque Antunes se apropria da vídeo-arte por seus aspectos estruturais e não pela projeção em vídeo em si. Na montagem, a direção constrói um Nelson Rodrigues amplificado pelo contemporâneo e mais dimensionado às questões de hoje. Quase que simultâneas, as cenas se interligam sem cortes temporais, sem redimensionamentos espaciais, enquanto o específico de cada momento parece compor um imenso diagrama fractal do todo.

Em Vapt-Vupt, o teatro serve a vídeo-arte e esta a ele de maneira fundamental. E isso faz toda a diferença, pois o que nos é oferecido no palco, então, dialoga sensivelmente com a maneira como nos relacionamos com a narrativa urbana e as relações.

Entre a direção pretensiosamente acertada e a dramaturgia ingênua e ineficiente, Antunes revela habitar um paradoxo de sua própria persona. Como é possível ser simultaneamente um diretor inventivo e investigador e um dramaturgo estereotipado por regras acadêmicas ultrapassadas? Uma única possibilidade de explicação: não se acerta em tudo, e isso, mais do que Antunes, parece ser um erro comum entre nós.

Quem é o colunista: Ruy Filho.

O que faz: Diretor e dramaturgo.

Pecado gastronômico: Carpaccio de pato do Piselli.


Melhor lugar do Brasil: Salvador fora de temporada.


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Atualizado em 6 Set 2011.