Foto: Sxc.hu |
Proseando madruga adentro com uns tamanduás tailandeses numa roda de samba irlandês, uma magnólia loira perguntou se eu achava que ainda havia sentido o naturalismo e o realismo em uma época pós-fotografia. Sem pausa na respiração, a beldade disse que a arte atual (sei lá o que ela quis dizer com isso) tem de ser extinta porque é um extremo desserviço à capacidade humana de criar mundos, construir um imaginário e refletir questões com um mínimo de profundidade, "afinal, a arte como essência é um combustível para a apreensão da realidade, e com a assepsia da arte convencional, da natureza morta e da grande maioria das tresheiras hollywoodianas o que fica é seu oposto: a alienação".
Concordo. E creio que a motivação para isso é a estética. Ao contrário do que prega o senso comum, nós não absorvemos a realidade levando em conta a ética, e sim a estética. É por meio dela que nos comunicamos com o mundo que nos cerca e mesmo conosco: ao olhar um morcego desmamado, nosso vínculo com ele está relacionado a onde ocorre a cena, como está a figura do chorão, nosso humor do momento e nossa bagagem (histórica, moral etc.).
Conhecendo esse princípio, a sociedade em processo de industrialização caminhou para a necessidade de criar uma linguagem estética que pudesse desaguar os seus produtos e sua moralidade. Essa linguagem precisava ser espelhada na realidade (para gerar o convencimento) e unificada (para não causar espanto do público).
Há bastante tempo é ela quem domina, por meio da publicidade, da televisão e do cinema, em especial o norte-americano. Vende-se a imagem do tirano e da raça causadora da tirania, a idéia em voga de politicamente correto, o ideal de amor... Como artigos expostos numa prateleira, essas imagens apresentam ao olho e ao cérebro um código de conduta que passa a ser respeitado por todos que querem ser socialmente aceitos, sob pena de haver a marginalização daqueles que não se encaixam nesse perfil.
Pode-se entender que esses meios são voltados ao entretenimento e ao comércio e sua função nada tem a ver com arte, mas ainda assim há inúmeros problemas decorrentes disso: como a televisão está inserida no cotidiano do indivíduo desde seu nascimento, ela cria no imaginário popular uma determinada maneira de "enxergar". O olho é educado a absorver exclusivamente aquele determinado estilo de mensagem, tanto que postos diante de experiências estéticas diferenciadas normalmente há estranhamento e conseqüente recusa da linguagem.
Perpetua-se um ciclo vicioso: a população acostuma-se a um gênero de linguagem, conseqüentemente os financiadores das obras (normalmente empresas privadas) valorizam na hora da escolha dos projetos aqueles que se adequem à maior capacidade de atrair público, fazendo com que os artistas, para conseguir transformar sua idéia em obra acabada, concebam suas produções dentro dessa linguagem.
Esta é sim a velha discussão sobre a função da arte e da televisão, assim como seus direitos e deveres. Como a televisão é um veículo de concessão pública, nada mais natural do que fazer com que ela cumpra o papel não apenas de mercador de moralidades e interesses corporativos, mas de educador e canal de discussão aprofundada sobre a época em que vivemos.
Mas, desconsiderando isso, o que sê é uma salada institucionalizada que vem sempre com o ingrediente da superficialidade - o que nada tem a ver com a qualidade ou ausência de qualidade da apresentação. Tal superficialidade é intensificada pelo método de financiamento da TV (a publicidade), afinal não é do interesse das empresas comprar causas que podem gerar polêmicas. O resultado são as obras limpas, que podem até levar um texto de Nelson Rodrigues, mas asséptico, com pitadas rasteiras de humor e sem intensificação da discussão social que o texto promove. Perde-se a função da arte e continua-se a promoção de uma sociedade com imaginário frágil, bagagem cultural mínima e reflexão reduzida, daí a corrida a academias para ter o corpo perfeito, a associação de felicidade com conquistas materiais, a escalada da violência e a sensação de individualismo. Uma sociedade que evita a todo custo olhar para si somente poderia gerar essa situação de guerra civil em que vivemos.
Leia as colunas anteriores de Cesar Ribeiro:
? Receita para preparar celebridade em três minutos
? A cartelização do conhecimento
? Rebanho cego de pastores mudos
? Sobre cotidiano, arte e sensibilidade
? Estamos todos felizes?
? Os progressistas não ouvem bossa nova
? Um axé bem cuidado ainda é um axé
? Alguém viu as orelhas de Van Gogh?
? Como vender um peixe amanhecido
? Uma fábrica de Alemães
Quem é o colunista: Cesar Ribeiro.
O que faz: diretor da Cia. de Orquestração Cênica.
Pecado gastronômico: comidas gordurosas & óleos adjacentes.
Melhor lugar do Brasil: metrópoles com multidão, sirenes & fumaças.
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Atualizado em 6 Set 2011.