Guia da Semana

Foto: José Romero


A Companhia do Feijão se apresenta de janeiro a julho em comemoração aos dez anos de sua existência. O evento mostra cinco peças de seu repertório com bilheteria a preços populares, uma vez que a companhia está inserida no Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo.

O nome da companhia, nascida em 1998, veio do primeiro espetáculo, onde "encararam os moradores de rua desta cidade difícil e perguntavam o que mantinha vivas aquelas vidas". A peça chamou-se Movido a feijão.

O espetáculo Nonada, segunda desta mostra, estreada em 2006, aborda temas da realidade social. Um programa especial dos dez anos da Companhia é distribuído no local. A sinopse esclarece o conteúdo da peça, que discute "nosso conflito fundamental: o processo de modernização conservadora que gerou nossa difusa identidade".

Por uma casualidade, começo a conversar, sem sabê-lo com os diretores da peça, Zernestro e Pedro Pires que se situavam ao lado de fora do teatro, antes de iniciar a peça.

Obtive muitas informações sobre o edifício à frente. Não há critério das coisas que são jogadas pelas janelas. Aquele prédio tem alta rotatividade, as pessoas são das mais variadas características e se configuram geralmente pela ilegalidade. Dizem: o proprietário do edifício, ser um anônimo. Não há registro dos inquilinos e por isso a alta rotatividade.

Foto: divulgação
A ficha de reclamações do síndico é enorme e os responsáveis da queixa não são facilmente encontrados. Fazendo com que este pedaço do centro seja o local mais internacionalizado e seguro de São Paulo, uma inversão total dos valores na questão da segurança nacional, equipada por seus órgãos específicos. Pois abrigam estrangeiros e também turistas do mundo atraídos à procura de diversão.

Enfim, na bilheteria comprei meu atestado de óbito ou, meu ingresso! Após a acomodação do público, a peça se mostra ambientada em um lugar irreconhecível no espaço e no tempo. Com a entrada dos atores instalados entre o público, o mestre de cerimônias no centro os convida para contarem suas histórias, conduzindo em retalhos a vida que levaram. Agora habitam esse local indeterminado.

É uma memória póstuma, começa pelo fim.

Com um jogo de cena entre os atores há participação especial da iluminação que possui múltiplos focos, cada um individuado pelos personagens da peça que, com primor, defendem histórias calcadas em contos brasileiros.

Vamos sendo conduzidos para a história da vida de cada um dos três personagens em alternância até o momento de sua morte. Acompanhados do som de um coração com batidas cadenciadas, vivos estamos, observando o não-lugar.

O intrigante personagem natimorto se apresenta como coadjuvante de todas as histórias, mas de si mesmo nada é descoberto e é nítida a sua busca por uma história neste espetáculo.

No decorrer da peça, nossos olhos de expectador se tornam também juízes, interposto uma relação de exploração sexual entre homens de distintas classes. Fruto da realidade historicamente construída no Brasil de exploração destemida do menos privilegiado. A sua condução nos faz emocionar nessa relação homossexual que, entre o explorador e o explorado há a relação afetiva. Perde-se esse caráter de dominação e confunde em um interminável jogo onde o explorador por ser muito solitário, se apaixona pelo seu servo. A solidão, responsável pelo suicídio do personagem explorador, é cometida ao saber que seu servo negro vai se casar.

Foto: divulgação
Rasgando as almas que tremem nas sombras, fazendo-nos aceitar pelo afeto exteriorizado destes, como a delicadeza, o ciúme, o cuidado. Uma personagem rica que defende sua conduta social faz refletir que, desta vida nada se leva, os pré-conceitos antagônicos de classe podem se tornar uma característica em comum. Mendigar por amor é equivalente a mendigar por dinheiro. Mas em minha opinião são ações bastante distintas. Dado seu contexto na peça com a ambientação da eternidade é válido e coerente com o conto de Clarice Lispector, Ferida Grande Demais.

O envelhecimento de outra personagem, que viveu a velhice sempre na ilusão de grandes amigos em vida que estendessem suas mãos, encontra-se ansiosa por um passeio e recostada a uma árvore e morre naturalmente. É extraído do conto O Grande Passeio de Clarice Lispector e sua representação é muito poética.

Uma segunda estação revela a origem do desmemoriado personagem natimorto, que está desenrolado no conto do Machado de Assis, Pai contra Mãe, que é um elo para explicar os diferentes períodos dos textos e fazer desta forma uma apresentação crítica e suave do Brasil, assim segue com determinações do mestre de cerimônias a história de Natimorto. Que não pode ser contada naquele local primeiro, o qual fora explorado por todos. Com o armazenamento de informações passadas naquele espaço-tempo indeterminado, o personagem cria sua memória a partir das histórias dos outros reveladas.

O pressuposto da concepção da peça, é a alma.brasileira. O conto de Machado de Assis, Pai contra mãe, diz, "a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel". E assim temos diante de nós a revelação da injusta e cruel história do Brasil e de natimorto.

Num âmbito maior a vida é apresentada como miserável, diferentemente do lugar que se passa a peça no primeiro tempo.

É assim com excelência que o mestre de cerimônias convicto habitante desta terra distinta, além de se parecer fisicamente com o rockeiro Anthony Kiedis do Red Hot Chili Peppers, conduz todo o espetáculo e nomeia com múltiplas palavras este não-lugar, origem do nome da peça Nonada.

Baseada em textos como, Ferida grande demais, O grande passeio, de Clarice Lispector; Túmulo, Túmulo, Túmulo de Mário de Andrade e o obrigatório, Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, a Companhia do Feijão se mostrou, assim como seus diretores e o encarte de seu material de 10 anos, um grupo preocupado com o fazer artístico nacional e com consideração a todos os grupos teatrais reunidos em São Paulo.

Quem é a colunista: Renata Bar Kusano.

O que faz: Publicidade e Propaganda na Faap, e estudante do último ano de teatro na Escola Célia Helena e participo de oficinas de criação.

Pecado gastronômico: Massas, todas suas formas e seus molhos.

Melhor lugar do Brasil: Jericoacoara (CE)

Fale com ela: [email protected]

Atualizado em 6 Set 2011.