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Cena de Era...Uma Vez? Foto: Divulgação |
Era... Uma Vez? O título sugestivo do espetáculo em cartaz, no Sesc Paulista, em São Paulo, aproxima o espectador de uma questão própria de nossa época: o transtorno obsessivo-compulsivo. Apropriando-se de O mito de Sísifo, de Albert Camus, o Companhia Terraço Teatro, dirigida por Alexandre Caetano, executa um elaborado discurso corporal onde repetições e contágios são os pontos narrativos.
Ainda que haja certa ingenuidade nos movimentos dos atores, estes muito próximos aos exercícios físicos das salas universitárias, o elenco, Daniel Dalberto, Karina Almeida, Marina Elias e Thaís Branderburgo, assumem a peça com vigor e profissionalismo dignos dos talentos quais demonstram.
Não é fácil a elaboração de uma linguagem híbrida permeadora do teatro, dança e música. E em poucos momentos fica claro a necessidade de se romper com o correto para adentrar ao risco da experimentação.
Contudo, as repetições constantes e o dinamismo da encenação acabam por transpor a falta de surpresas e inclui o espectador como cúmplice de cada mínimo movimento, cada passo, gesto, olhar.
E é aí que a peça vai bem, na consistência de um trabalho preciso, claramente em crescimento.
O mito de Sísifo trata de um homem condenado a empurrar uma rocha até o pico de uma montanha, que, despencando, exige o recomeço da ação até sua morte. O belíssimo texto de Camus introduz ao espetáculo certa poesia e bons momentos de interpretação.
Recomeçar, refazer, retocar, re-conferir, vão além das características patológicas próprias do TOC, e podem servir de metáfora do próprio processo criativo. E há algo mais em Sísifo. O mito nos fala sobre persistência e derrota, tal qual o fazer artístico, quando a finalização ou conclusão de uma obra exige do criador uma revisão de sua trajetória, terminando, quase sempre, na dicotomia entre a descrença do feito com a ilusão sincera do fazer.
A rocha, objeto térreo a nos lembrar as dificuldades concretas do criar, do fazer, do existir, infinita sua presença no peso das subidas e em cada uma incorpora e traduz a violência da exigência da rotina, a eliminação da percepção do próprio ato, seqüencialmente anulando-se, desistindo-se do querer entender.
Vivemos a execução das ações diárias patologicamente tanto quanto um paciente portador de transtornos compulsivos. Apegamo-nos às seguranças concretas como subterfúgios às derrotas, como se fosse possível não enfrentá-las, não as termos. E seguimos, fiéis às ilusões, de que em algum momento a rocha não mais descerá, e virá então o esperado descanso recompensador.
Nada fazemos a não ser continuar e sonhar. Nada criamos a não ser a esperança de que um dia tudo vai passar, acabar. Nossos transtornos obsessivos são explosões de conflitos morais frente nossa capacidade de ir além, de arremessar a pedra para o outro lado ou esquecê-la ao pé da montanha. Somos confrontados diariamente com nossos juízos e perdemos sempre no julgo de não poder haver outras saídas, apenas a continuação eterna até o inevitável morrer.
Era... uma vez? Escancara a importância de relermos os pequenos gestos, suas compulsões e os impulsos germinadores de cada pensamento. Um espetáculo que se ainda não maduro na forma, preciso na abordagem do dizer.
Leia as colunas anteriores de Ruy Filho:
? Como lidar com os códigos dramáticos frente as modificações feitas em montagens de clássicos?
? A contemporaneidade de uma tradição
? Closer
? Gob Squad
? O teatro de Henrique Diaz
? Mais Quero Asno... e os recursos do fomento
? El Chingo e os fantasmas de cada um
? Com prosecco e qualidade
? O teatro candango e a morte de todos os dias
? Entre o silêncio e a mudez
? A ciência como pretexto dramático
? A alma decepcionada frente à realidade

O que faz: diretor e dramaturgo.
Pecado gastronômico: carpaccio de pato do Piselli.
Melhor lugar do Brasil: Salvador fora de temporada.
Fale com ele: [email protected] ou acesse o blog do autor
Atualizado em 6 Set 2011.