Guia da Semana

Legenda
Foto: sxc.hu


No começo desta semana foi aprovado pela Câmara Federal um projeto de lei que estabelece a obrigatoriedade de diploma em Letras para qualquer autor que deseja publicar um livro. O texto, de autoria do deputado Antero Leônidas (PSE/SP), estabelece que "para zelar pela qualidade dos trabalhos apresentados será exigido, a partir de junho de 2008, que as editoras somente disponibilizem ao mercado obras cujos autores estejam cursando ou sejam formados na cátedra de Letras, sendo que a partir de 2012 somente poderão ser publicadas obras de autores formados na referida cátedra. A lei regula qualquer tipo de publicação que envolva textos, o que inclui obras acadêmicas e literárias e suas vertentes, como poesias e quadrinhos".

Muito bem, não precisa se assustar. A notícia é fictícia e soa absurda. Mas o fato, porém, é que lei semelhante regula a atividade teatral. Para você exercer a profissão de ator (na teoria em qualquer meio: teatro, cinema, televisão) é obrigatório ter o tal DRT. A busca para conseguir essa "carteirinha" significa fazer curso profissionalizante de ator, seja de nível secundarista ou universitário, ou correr atrás do Sated (sindicato da classe) para comprovar sua capacidade de atuar. A lei vale também para os diretores teatrais.

Meus camaradas de manguaça, entendo que assistir a uma peça ruim por dia ou ser viciado em axé pode ter para a mente um efeito mais devastador do que a heroína, mas, convenhamos, a exigência dos tais documentos de classe serve para evitar que um melengo que se passe por médico acabe tirando o fígado de um paciente que veio ao hospital porque estava com febre. Do mesmo jeito, ninguém quer que um prédio desabe na cabeça enquanto está dormindo, então é melhor que o engenheiro e o arquiteto tenham formação em suas áreas.

Tirando o efeito enxaqueca que uma peça mal encenada causa ao bom gosto e ao bolso, quais motivos poderiam justificar a exigência de formação profissional em uma área tão subjetiva quanto à arte? Pode-se exigir do artista e de seu campo de atuação os mesmos parâmetros que regulam atividades mais objetivas, como química, odontologia etc.? Por outro lado, a quem cabe julgar se o artista em formação está preparado para atuar? Se a prática da atuação servisse realmente para aprimorar a arte, um Tony Ramos da vida não deveria melhorar com o tempo?

A questão não passa exatamente pela característica de oferecer ao público trabalhos com profissionais capacitados - para isso basta ver as peças em cartaz por aí e o nível dos cursos de interpretação. Trata-se de reserva de mercado. Para que o tal "meio" subsista, já que a bilheteria não rende boa grana e poucos são os projetos que obtêm patrocínio, é preciso criar uma estrutura que possibilite a sobrevivência da classe. Então o que se faz? Exige-se uma formação acadêmica, e tome professores de teatro e cursos.

De alguns séculos para cá a sociedade assumiu como benéfica a regulamentação pelo próprio mercado, tentando afastar os tentáculos do governo das atividades privadas. Trocou-se um tentáculo por outro. Hoje a premissa econômica está acima de tudo - basta olhar os grandes shoppings em que se tornaram as universidades. Dessa forma, como se afastou o governo da mediação da maioria dos conflitos, grupos de interesse se reúnem para ditar as próprias regras. A diferença entre um governo e a classe é que o governo, apesar de seus interesses, pode mediar questões com um olhar de quem está de fora. Mas como fazer quando quem dita as regras está dentro da questão e angaria os benefícios das próprias decisões?

Isso tudo não quer dizer que sou contra os centros de formação de ator. Sou contra a exigência de passar por eles. Quem quiser ter uma formação acadêmica, que vá fazer o curso. Quem não quiser, não faça. Mesmo porque estruturas bem-sucedidas financeiramente, como a Globo, quando foram incomodadas pelo sindicato simplesmente resolveram abrir seus próprios cursos de formação de atores. Daí a chuva de modeletes-atrizes desfilando pelas emissoras.

Isso fora a questão de que a exigência de DRT concentra a possibilidade de ser ator na mão de quem tem recursos para financiar um curso, visto que há poucos centros públicos de formação de atores. É uma lei útil se a premissa for econômica (para a classe, obviamente), mas absurda do ponto de vista artístico. Por já estar consolidada, pouco se chia sobre essa situação ridícula. Mas, se deixar, daqui a pouco para se apresentar com uma banda de rock vão exigir formação em Música.

Leia as colunas anteriores de Cesar Ribeiro:
? Receita para preparar celebridade em três minutos

? A cartelização do conhecimento

? Rebanho cego de pastores mudos

? Sobre cotidiano, arte e sensibilidade

? A platéia invade os camarins

? Estamos todos felizes?

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Quem é o colunista: Cesar Ribeiro.

O que faz: diretor da Cia. de Orquestração Cênica.

Pecado gastronômico: comidas gordurosas & óleos adjacentes.

Melhor lugar do Brasil: metrópoles com multidão, sirenes & fumaças.

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Atualizado em 6 Set 2011.