Guia da Semana

Foto: Getty Images

O velho e o novo se encontram no mundo contemporâneo

Seu nome é World Wide Web, mas podem chamar também de cabo de guerra, principalmente quando o assunto é propriedade intelectual. De um lado temos iniciativas como a estratégia de venda online do novo álbum dos ingleses do Radiohead utilizando os dispositivos legais do Creative Commons; do outro, o fim das mesmas licenças no site do Ministério da Cultura (MinC), que colocou os direitos autorais na berlinda nas primeiras semanas de fevereiro. No meio, muita confusão e dúvidas: afinal, no mercado da cultura, quem ganha (ou deveria ganhar) dinheiro com o conteúdo veiculado na Internet?

Uma coisa é certa. O tema não é tão debatido desde a Convenção Internacional de Berna, realizada em 1886 e que formalizou o primeiro dispositivo jurídico a garantir prerrogativas de exploração comercial para artistas, escritores, cientistas e demais autores sobre suas obras intelectuais. E o que mudou? "A Internet é simplesmente um meio de comunicação, assim como os demais. A sua existência não mudou tão significativamente as formas como a sociedade consome cultura e se comporta. O que a Internet fez foi dar velocidade a essa troca e minar uma boa parte do poder dos intermediários, ou seja, as gravadoras, editoras e demais agenciadores do trabalho intelectual", explica Nehemias Gueiros Jr., 52 anos, advogado e professor da FGV/Rio, há trinta anos na área e autor do livro O direito autoral no show business - A Música, já em sua quarta edição.

Castigo divino

A essa inesperada situação vivida pelas grandes das indústrias cinematográfica, fonográfica e editorial, Gueiros brinca e apelida de castigo divino do establishment. "O Copyright Act, primeira lei a tocar no assunto, também conhecido como Act Anne C 5, foi promulgado pela rainha Ana, da dinastia dos Stuarts da Inglaterra, em 1710. Ela concedeu aos livreiros a exclusividade dos direitos das obras por eles publicadas durante 14 anos, renováveis por outros 14 anos. Ou seja, a primeira lei não foi criada para proteger os autores, mas sim os intermediários. Veja quanto tempo foi necessário para se ver as coisas por outro ângulo", argumenta.

Enquanto as grandes empresas fazem ações espetaculosas contra pirataria, downloads e acionam juridicamente quem não pode pagar, jovens editores buscam nas brechas formas de respeitar o trabalho de seus agenciados sem criminalizar a Internet. É o caso de Daniel Campello, 30 anos. Também advogado e apaixonado pelo universo da música, direcionou a carreira para o mercado dos direitos, abrindo um escritório especializado e uma empresa para agenciamento. "O objetivo é trabalhar com o artista de forma integrada, tanto na questão jurídica como na orientação empresarial. Mas, ao contrário das grandes, ele, que é nosso cliente, tem as maiores prerrogativas, e não ao contrário", reforça Campello.

Foto: gUi Mohallen

Uma das fotos do artista gUi Mohallem que estão disponíveis na web para uso afetivo, mas não comercial

Para ele, a Internet deve ser, sim, um espaço livre para exposição de obras intelectuais. No entanto, no mundo capitalista, isso tem um certo prazo de validade. "O artista quandoestá começando usa todo o tipo de mídia para fazer da sua música um cartão devisitas e se apresentar por aí. Mas, depois de tempo de carreira, ele precisa receber o seu".

Foi com esse intuito que Lawrence Lessig, advogado e professor de Direito da Universidade de Harvard, lançou em 2002 o Creative Commons, um conjunto de licenças padronizadas que estabelecem os limites para reprodução de uma obra de acordo com o interesse do autor. Ao contrário do copyright, que necessariamente precisa estar vinculado a uma instituição privada, a licença criativa é mantida por uma ONG, que permite seu uso gratuito, oferecendo amparo legal total (pois é aceita internacionalmente) e a custo zero.

Coisa nossa, coisa deles

A ideia fez tanto sucesso que ganhou o apelido de copyleft, ou cópia esquerda (um trocadilho com a palavra copyright, do inglês, direito reservado). O instrumento foi encampado desde o início da gestão de Gilberto Gil à frente do MinC. No entanto, uma das primeiras ações da nova gestora, a ministra Ana de Hollanda, foi acabar com o uso do Creative no site governamental. No lugar, aparece uma autorização por escrito de direitos de reprodução, desde que citada a fonte. O bafafá foi imediato. "A declaração [do MinC] não é uma licença, não tem validade jurídica" publicou o antropólogo Hermano Vianna em sua coluna do jornal O Globo, em 28 de janeiro. O Guia da Semana entrou em contato com o MinC para novos esclarecimentos e foi informado, por meio da assessoria de imprensa, da impossibilidade da ministra responder por ser um tema "complexo e estar em rediscussão" .

Em plena selva, a quem ainda veja espaço para a poesia. "Não uso Creative Commons, pois nunca pesquisei o suficiente. Acho uma delicadezaquando as pessoas pedem, ou por e-mail ou telefone, e, claro, digo sim. Mas já cansei de me deparar com trabalhos meus, como ilustração em blogs. Mas já acheitambém publicada em livro numa grande editora. Nesse caso, eu processei", contao fotógrafo gUi Mohallem.

Aos 31 anos e em sua primeira individual - intitulada Welcome Home - na Galeria Emma Thomas, em São Paulo, gUi publica online seu trabalho no site de imagens Flickr. Para a exposição, fez 24 cópias para expor e mais alguns para venda. Ao mesmo tempo, fez uma tiragem de mais de mil cartazes em papel-jornal de uma das obras. "A minha arte está aí para ser usada, mas não podem usar o trabalho para ganhar dinheiro, e no mercado, eu preciso ter esse controle. Por isso da opção de liberar no suporte digital e investir no objeto físico, esse sim procurado pelos colecionadores de arte que topem pagar o preço", define o artista.

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Tom Yorke e o Radiohead lançam em 19 de fevereiro o oitavo álbum. Primeiro, na internet

Enquanto Ana de Hollanda retrocede, os ingleses de Radiohead avançam e marcam mais um gol de letra. Para o lançamento do oitavo álbum, The King of Limbs, Tom Yorke e cia novamente disponibilizaram as faixas na Internet. A banda já tinha feito o mesmo com o álbum anterior, In Rainbows, mas dessa vez os valores estão definidos: U$9 para a obra em MP3, U$ 14 em arquivos wav., de melhor qualidade sonora.

E você, anda dentro da lei? Tem seus direitos violados? Descubra o que está e não está garantido pelos direitos autorais. As respostas são do advogado e professor Nehemias Gueiros Junior

Copyright e Creative Commons só servem para música?
Não. As leis de direito autoral são válidas para todas as obras intelectuais, isso incluindo textos de blogs, fotos particulares, vídeos, filmes e músicas, sejam trabalhos profissionais e amadores. Projetos de arquitetura, design e engenharia e até estudos científicos também estão amparados. Ou seja, tudo que for criado e pensado pela mente humana.

Se eu encontrar alguma criação minha em outro site ou impresso, tenho o direito de processar quem se apropriou?
Sim, há embasamento legal para a abertura do processo caso não houve solicitação anterior nem pagamento de royalties. O resultado final da ação dependerá da forma como a obra for utilizada, e tende ao ganho da causa se for comprovado ganho ou vantagem financeira por parte de quem a usou de forma indevida.

Qual é a forma correta para o uso de criações intelectuais de outras pessoas?
O interessado deve pedir a autorização de uso junto ao responsável e obrigatoriamente citar o autor original.

Para haver o direito autoral garantido é necessário o registro, seja por copyright ou Creative Commons?
No Brasil, a legislação entende que basta a publicação, de qualquer natureza (incluindo blogs, flogs, video e podcasts, bem como zines e folhetos impressos) para estar garantida a autoria. No entanto, o mais correto é o registro junto à Biblioteca Nacional, órgão público responsável pela autenticação das obras intelectuais.

Caso eu achar algo meu publicado em site hospedado em país estrangeiro tenho o direito de acionar legalmente quem se apropriou?
Sim, e especialmente se o país for signatário da Convenção Internacional de Berna, pois as leis de direitos autorais são de âmbito internacional e funcionam de forma complementar entre as nações signatárias.

O domínio público vale também para a internet?
Tanto para obras feitas para a web como para as disponibilizadas. Atualmente, a lei do domínio público estabelece o prazo de 70 anos após a morte do autor, a contar sempre de 1º de janeiro do ano subseqüente. Vencido este prazo, os herdeiros não possuem mais direitos patrimoniais sobre a obra, isto é, não podem mais cobrar por sua utilização.

Fazer download de músicas e filmes constitui crime?
Se a obra for protegida por algum dispositivo legal e não houve pagamento para o uso, sim.

Atualizado em 1 Dez 2011.