Guia da Semana

Era noite e a festa estava cheia. De repente, a polícia invadiu, mandou “viados para um lado, putas para o outro” e “brancos para fora, pretos para dentro”. E atirou. A lembrança, nítida apesar da distância de mais de vinte anos, é narrada como uma radionovela por um dos protagonistas de “Branco Sai, Preto Fica”, filme de Adirley Queirós que estreia neste mês.

O longa mistura documentário e ficção (científica, pasmem) ao inserir personagens reais (Marquim da Tropa e Shockito) como atores de suas próprias histórias, levemente reinventadas. O primeiro é (interpreta?) um DJ de uma rádio pirata, amante de rap e soul, que conta suas aventuras entre as batidas de seus discos favoritos. Ele vive numa cadeira de rodas, desde que foi atingido na coluna durante a citada ação policial. O segundo, perdeu uma das pernas na mesma ocasião e hoje ajuda outras pessoas a lidarem com suas próteses mecânicas.

O diretor atenta (talvez excessivamente) a pequenas cenas cotidianas dos dois protagonistas, chamando a atenção às consequências duradouras de um ato impensado como um tiro numa boate. Mais de uma vez, por exemplo, o público é obrigado a observar a demora massacrante que é a transposição de uma escada por Marquim, a bordo de seu elevador caseiro.

Enquanto a câmera se ocupa de detalhes aparentemente irrelevantes, um cenário maior vai se construindo ao fundo, inicialmente embaçado e, aos poucos, mais nítido e complexo. Nesse Distrito Federal semi-ficcional, uma “polícia do bem-estar social” controla o fluxo por meio de passaportes e toques de recolher. Mas há uma reação a caminho – um plano bastante simbólico envolvendo uma bomba cultural apontada para Brasília.

Isso tudo já seria suficiente para render horas de discussão, mas Queirós vai ainda mais longe e apresenta um personagem do futuro, Dimas Cravalanças (Dilmar Durães). O enviado não é exatamente “futurista”, já que veste roupas comuns e viaja num contêiner. Além disso, sua presença nem parece ser notada pelos outros personagens, exceto por desenhos de Shockito, o que sugere que questionemos sua origem.

Por outro lado, ele tem uma missão bem clara: reunir provas para que, no futuro, o Estado possa ser processado por crimes contra populações periféricas. Ao que tudo indica, há outras intrigas ocorrendo no seu tempo além dessa revanche, o que faz pensar – se não forem brancos contra negros ou o centro contra a periferia, serão outros grupos declarando guerra contra si.

“Branco Sai, Preto Fica” levou o principal prêmio do Festival de Brasília em 2014, surpreendendo o júri ao abordar um tema pesado de forma tão criativa. A obra, vale ressaltar, tem seus problemas, como a grande quantidade de cenas meramente contemplativas, sem função narrativa. Mesmo que a execução não seja perfeita, porém, é revigorante ver que os cineastas brasileiros finalmente estão se arriscando em perspectivas menos óbvias sobre os velhos problemas do país.

Por Juliana Varella

Atualizado em 12 Mar 2015.